POEMAS DO LIVRO “NEVE INTERIOR”
(PRÉMIO DE LITERATURA CLARICE LISPECTOR 2022)
31
Tenho uma idade que já não encomenda cotovias.
Migraram dos lábios os poemas inflamáveis.
Arder era uma música de hormonas descalças,
mas dançou em nós uma civilização de vermes.
Caminho. Os pés, duas candeias que acendem a locomoção.
A paisagem sem limalhas na garganta repete:
vê na antologia dos outros,
o itinerário do pássaro que em ti se vai alagar.
As cigarras imersas no termómetro das searas
convidam a face a visitar nas rugas as estátuas de Agosto.
Passam corvos, um luto que voa.
A brisa mergulha numa árvore.
Os ramos lançam a sua roupa no solo.
A pastagem, enciclopédia verde lida pelo gado.
O céu é uma fenda.
Trovejei sempre nos subúrbios de Deus.
Vi fugir dos templos animais horrendos
e crianças vasculhadas como uma gruta.
Gosto apenas da música sacra que brota dos loucos
e aprendi a domesticar a insónia com Chopin.
A auto-estima não é um bosque.
O pensamento gosta de beber ciclones
em egos que se maquilham com duzentas léguas de mitos.
Os homens estalam sempre na cerâmica da mesma pergunta:
Em que idade atraca o corpo na cave da Primavera?
32
Para Miguel Ángel Burgos
Aqui o planalto é um caçador.
Cada minuto uma autópsia aos poços e alçapões.
Sabemos agora: há muito que o corpo está desempregado da infância.
Nesse tempo, o ritmo dos animais era um salmo.
A neblina massajava as árvores.
Às primeiras sístoles dos pássaros,
os ramos iluminavam de orvalho a audição da pastagem.
As cigarras liam a sina ao estio.
E entrávamos sem fita métrica nos hospícios
para trazer mil graus centígrados de Chagall no peito.
As raposas não eram hóspedes dos lábios,
nem a garganta uma submissão do capitalismo.
Os dias financiaram a velocidade
e fundou-se uma religião de nuvens.
A nossa laboriosa raça humana
não passa de uma fatídica procissão de fantasmas,
que vão do nada ao nada.
Não respirámos as bússolas prescritas por Unamuno
e foram os discípulos de Hipócrates
que nos navegaram em rotas
onde o pensamento subiria pinturas de Dalí.
O ego é um meteorologista convicto.
Assim vai a Primavera interior dos homens na cidade:
florimos serotonina.
33
Sou um violino que leva magnólias nos tendões.
Atravesso a radiografia do silêncio. É sublime a inutilidade do dia.
Ter tempo para verter deuses na lepra. E repetir várias vezes:
na Primavera é preciso alugar um duplex para a sedução.
O amor nem sempre foi este lago com animais fabulosos bebendo o rio
e a água entoando nas veias o prado.
Lembro-me da tua boca a recitar trovões.
O céu vindimado e harpas despenhando-se até à extinção.
Nesse tempo desconhecia: a loucura é um fogo profundamente lúcido.
O amor, hospício para quem gosta de andar a galope no vidro.
Assim entrei no escuro.
Nunca aprendi o mercantil movimento das sílabas
que bebem no dorso das máscaras.
Fui célere a escrever a autobiografia do porão.
Como Herberto Helder, passei a acreditar: cada dia é um abismo atómico.
As estações caminham sumptuosas bebendo a largura da impermanência.
Cada coisa arrumada na sua fenda dançando a espera.
As garras da idade afirmam: o mel é côncavo.
Há nas ancas destas montanhas, árvores com o umbigo virado para a água.
E nas margens, algumas pedras que migraram de homens em erosão.
Cheira o pensamento.
A tecla vital do olfacto é a morte.
Se tiveres dúvidas sobre o itinerário dos deuses, não esqueças:
Notre-Dame beijou um hemisfério de chamas.
34
Tenho uma idade já sem falanges. Lâmpadas tensas.
O verde com as tochas enlouquecidas.
Mesmo centrifugando inundações,
o pensamento só frequenta árvores sem pulso.
É carnívora a cidade. A arquitectura daltónica.
Os homens, laborioso ninho de vírgulas
na seara do capitalismo.
Talvez Beckett tenha lido este lugar:
o hábito é o balastro que prende o cão ao seu vómito.
A rotina, sono extremo
onde se perdem as rédeas às máscaras.
Acreditámos que a boca
iria pedalar Whitman perpetuamente.
O design da infância tinha cavalos nos músculos
e os tendões voavam o corpo para a amplitude.
Uma corça orava ao sigilo
e, se o bosque tremia algum rumor,
deslocava-se ao ritmo do divórcio no século XXI.
Às vezes, choviam uivos sobre o vale.
O som municiado pela alcateia,
arma denunciando a crónica do animal humano.
A minha mãe dizia: não temas o lobo
porque quem te vai cercar é a sedução.
A filosofia do estrépito
esquece a pontualidade da faca.
É no cume
que o gelo forja
as cicatrizes mais audíveis.
O amor tem sempre o sotaque da neve.
36
Vivo no batimento cardíaco
de uma gaiola de refugiados.
O novo século anunciava filigrana,
gargantas sem alçapão,
altruísmo de medula intacta.
Recitava-se a amnésia das fronteiras,
a livre circulação de candelabros na utopia
e mentes capazes de respirar esculturas de Rodin.
Atravesso a Europa vestida de arame farpado.
Passo os meses à espera
que o estio me dê um autógrafo.
Vivemos tempos de Goya na boca,
não pelo tráfego do deslumbramento,
mas pela imagem sombria pendurada no palato.
O terror sempre deu braçadas largas.
Somos o lapso que nunca atinge o degelo.
*
POEMAS DO LIVRO “ECOCARDIODRAMA”
(MENÇÃO HONROSA NO PRÉMIO LITERÁRIO NATÁLIA CORREIA 2021)
1
Este poema é uma basílica rasurada.
Nele repousa uma mulher
com o açafrão mordido pelo frio.
A esta hora há versos
na proximidade do cipreste.
No feminino espaço
respira uma filosofia
de orquídeas desmanteladas
e ainda,
a delinquência de um piano
que se extraviou das fábulas.
Neste poema vivem homens
com batas cor de neve.
Rastreiam o lodo das constelações
e decretam:
a eutanásia é o sagrado em contramão.
Neste poema entra agora um filho,
lê a geada no arquipélago maternal.
A pele já não é
uma dinastia de bosques
que ao toque
uiva à pulsação das metáforas.
Este poema quer caminhar
para uma idade
em que fluía nas veias
o design de Elsinore
e se alguém dizia,
Prozac,
não sabíamos que era um gato
para lamber o Outono.
Neste poema há uma mulher
que implora pelo ritual da foice
e o filho estabelece:
o corpo é violino para desactivar.
Neste poema o ciclone tem açaime
porque o Estado se julga candeia
que lê com exactidão
a adolescência do escuro.
A mulher,
Primavera de cores crucificadas.
Neste poema é noite
e há um filho
que reza obsessivamente:
és a biografia onde a lâmina limpa os pés.
2
Não sei se foi em Bach
ou nos olhos da minha mãe
que vi Deus nevar a primeira vez.
6
Prescindirei de tudo menos do poeta
que fica do desastre. Fingirei ver
que no fim de contas errei o século:
isto será Paris e eu Verlaine.
Joan Margarit
As horas não respiram
esculturas de Rodin.
Neste quarto,
tudo é procissão fraudulenta
onde se espera
por um nome submerso.
Depois da infância
os dias têm margens
e o sangue navega
para onde os cães ladram.
A asfixia é a especialidade humana.
Tempos houve
que entre quatro paredes
me entornava
na peregrinação da arte.
Tal como Maistre
deambulei nesse espaço
como se o seu conteúdo
fosse o mais apurado
método de viagem.
Dele guardo
as janelas confiscadas
às pinturas
de Vermeer e Hopper
ou o breve enlace dos corpos
que, ao encontrarem
um elevador
repleto de adrenalina,
estabelecem o infinito
na dança de duas bocas
que se afirmam,
texto de Kafka.
Mas neste quarto,
eras tu
o soluço de bosque,
repousando sedativos nos répteis.
E eu,
a regressar à jovialidade das fábulas
quando a tua boca ainda
se expressava em açafrão puro.
“Uma criança apanha trigo
no piano de Sassetti.
O pai sorri
porque o filho acaba
de colher o silêncio
numa artéria
que ultrapassou Deus.
É uma criança
que se desloca do estio
aos átomos de um brinquedo.
Segura a foice,
desconhecendo que o amor é cítrico.
A criança insiste
em bordar a Via Láctea.
Semeia com gestos destemidos
quadros de Chagall.
A crina da inocência
percorre a seara.
As sementes à proa da terra
bradam por líquido
e a criança decide verter
a religião da água.
Há um mar de raízes
que declama o solo.
A criança procura
entre os girassóis
um andaime
para prolongar as garças.
O crepúsculo,
ritmo do horizonte.
O pai diz:
é tempo de arrumar
as melodias de Mahler.
A criança resiste,
ameaçando construir
um ciclone nos olhos.
Nesse momento,
o progenitor abandona
A Casa dos Ceifeiros.
Desviando
pétalas e deuses
eleva o filho
para que este interiorize
a ética do colmo
e incendeie a sombra.”
O poema é um abismo que arriscou ser harpa.
9
Para Fernando Carvalho da Fonseca
Neste quarto,
respiras já
como piano naufragado
onde a neve arquitecta
a flacidez do pólen.
És um ciclone
repleto de frutos silvestres.
Quando o teu rosto
era espaço
entre o poema e a cotovia
recitavas assim a infância:
é um tempo
a explodir de arte,
onde a língua aceita
que um astronauta
desça pela primeira vez
sobre um quadro de Kandinsky.
E que numa expedição
às cordas vocais,
um verso, desnudado pela pleura,
grite:
se queres dias com permissão
para pronunciar o Louvre
arrisca a tua idade ao mastro
como Turner para colher
perfume de um relâmpago.
Na adolescência,
deixei-me esculpir por Bernhard:
O intérprete ideal de piano (…)
é o que quer ser um piano,
e eu todos os dias
digo para mim mesmo,
quando acordo:
quero ser o Steinway,
não quero ser o homem
que toca o Steinway,
quero ser o próprio Steinway.
Só mais tarde aprendi
a rezar Sassetti
para desviar limos das teclas.
Recordo,
era um instrumento onde Alice
à hora dos meteoros na garganta
semeava silêncio
na combustão da ave
ou um pomar
para descolonizar o ego.
Será assim a última sinfonia dos pulmões?
Um piano encadernado na falésia
com o mar por testamento.
15
Para Ivo Pereira
Deus nunca me atravessou as artérias
com dialecto nove na Escala de Richter.
Assim, observei o sagrado:
concerto jazz
para viajar versículos na amnésia.
Tenho a geometria
de quem vindimou todos os espelhos
e, tal como Agamben,
sei:
o contemporâneo é alguém que fixa o olhar no seu tempo,
para perceber não as suas luzes, mas o seu escuro.
Habito a cordilheira dos homens
publicados em contramão.
Nunca aprendi
o cântico das vénias
ou o hálito da estátua.
Faço agora domicílios
a um poema imóvel.
Neste quarto,
banda sonora
de um Outono sem rédeas,
já nenhuma melodia
sacode as crinas
na materna seara.
Um servo de Hipócrates
com postura de castelo feudal
traz na garganta,
um glaciar:
ninguém se equilibra infinitamente em Homero,
se Ítaca se penhorou ao crude.
O céu,
posfácio de plumagem negra.
Os corvos são o estetoscópio do derradeiro verso.
**
Alberto Pereira, escritor. Nasceu em Lisboa. Licenciado em Enfermagem. Pós-graduado na área Forense. Diplomado em Hipnose Clínica e Medical Luohan Chi Kung. Vice-Presidente do World Poetry Movement (WPM – Portugal). Membro do PEN Clube Português. Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008); Amanhecem nas rugas precipícios (2011); Poemas com Alzheimer (2013); O Deus que matava poemas (2015); Biografia das primeiras coisas (2016); Viagem à demência dos pássaros (2017, Portugal / 2022, Brasil); Bairro de Lata (2017, Brasil); Como num naufrágio interior morremos (2019, Portugal / Brasil); Neve interior (2021); Ecocardiodrama (2022) e Aforismos a 600 anos-luz (2022) – Bilingue – Português / Espanhol; os versos transformados em código binário e posteriormente em ondas de rádio, foram enviados por um braço robótico de Punta Arenas no Chile para a Nebulosa Saco de Carvão, situada no Hemisfério Sul, a 600 anos-luz da Terra, no âmbito do projecto ”Universal Poem” onde chegará em 2622.Participou em colectâneas de contos e poesia. Tem obra traduzida para alemão, chinês, francês, grego, inglês, italiano, japonês, russo, sueco e turco. Está publicada no Bangladesh, Bolívia, Brasil, Chile, Espanha, França, México, Peru e Suíça. Foi distinguido com vários prémios dos quais se destacam: 1º Prémio no Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina – Museu Nacional da Imprensa (2013) e Menção Honrosa (2014, 2015, 2017, 2018, 2020); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018 e 2020), respectivamente com os livros, Viagem à demência dos pássaros e Como num naufrágio interior morremos; Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Natália Correia (2021) com o livro Ecocardiodrama; Galardoado com o Prémio Internacional Cesar Vallejo – Excelência Literária (2021) – Unión Hispanomundial de Escritores; Prémio de Literatura Clarice Lispector 2022 com o livro Neve Interior. Finalista do 21º Concurso de Contos Paulo Leminski – Paraná, Brasil (2010) e do Prémio Internacional de Poesia António Salvado (2021) com a obra Mulheres legendadas de Alzheimer |Inédito|.
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