Enquanto a gente anda a pelejar pelo acordo ortográfico português, eu sigo desde Palavra Comum a escrever em galaico-português ao meu jeito. Perdoai logo os que não sejais partidários do meu dialeto mas ide á substância do conto.
Hoje quero contar algo que se refere a uma personagem discutida na Galiza do momento: o professor (de liceu) José Fernando Filgueira Valverde, eruditíssimo, polígrafo e… regedor da cidade de Pontevedra durante os anos duros do franquismo (Longa Noite de Pedra de Celso Emílio Ferreiro).
O fato de que a Irreal Academia do Impaís (oficialmente Real Academia Galega) decidisse dedicar ao Filgueira Valverde a festividade do Dia das Letras Galegas do 2015 está a fazer correr rios de tinta (real, sobre papel de jornal e revista, e, sobretudo virtual, nas redes sociais).
Começarei por dizer que aquele velho (velho para mim porque eu era um rapaz na altura do conto) sempre foi de trato cordial comigo, o qual já é uma vantagem para um se colocar em posição. Mas sempre o considerei um parvo e recordava-me uma frase do professor Manuel Rodrigues Lapa em referência a certo filólogo galego da banda repressora do Filgueira: “muito trabalhador, mas limitado”.
Os que maior mal lhe fizeram ao galego no tempo (inícios dos anos 80) da Lei de Normalización Lingüística eram assim: se calhar trabalhadores mas burrinhos, aldeões intelectuais, incapazes de imaginarem o que outros estávamos a berrar como consequência das nossas vivências…
Quando o Filgueira era “alcalde” de Pontevedra, na cidade corria uma quarteta popular que diz muito do velho professor: “Pontevedra é boa vila, / dá de beber a quem passa, / dá de comer ao Filgueira / e todo queda na casa”. Sábio povo!
Nesses tempos, o sogro dum dos meus irmãos mais velhos, jurista pontevedrês, contou-me dos horrores de juízos e fuzilamentos sumaríssimos da Guerra Civil. Aí surgiram os nomes do Filgueira e do bárbaro Rivero de Alguilar (Ribeiro do Aguiar castelhanizado). Porquê fuzilar o Alexandre Bóveda? Tanto pecado era ser galeguista de direitas, católico manifesto?
Mais deixemos essas dúvidas para os historiadores, que se me enfadam quando lhes piso os calos, e vamos ao que importa: o mal que o Filgueira et caterva lhe fizeram ao galego para sempre.
Desde os começos da democracia na Espanha, na Galiza discutiu-se muito sobre a maneira mais própria de escrevermos o galego, e logo se viram as posturas: desde o reintegracionismo total (escrevermos em portugalego como faço eu agora) até ao enxebrismo foneticista. No meio, os partidários da escrita histórica galega, tão próxima à do português antigo, e os que colocavam a grafia galega em posição fácil para os português-lentes enquanto se suprimiam formas perdidas com o tempo (por exemplo, distinção entre “s” e “ss”) na fala de aquém do Minho.
O grupo que capitaneava o professor Ricardo Carballo (Carvalho segundo ele) defendia uma solução de compromisso com apertura ao mundo luso-africano-brasileiro frente ao que ele considerava “escrita demótica”. Dada a sua imensa auctoritas na matéria, apoiada por outros professores do seu departamento de Filologia Galaico-portuguesa de Compostela, fomos muitos os que acreditamos que haveria concórdia.
Infelizes, não contávamos com que o franquismo deixara as mentes lavadas, entregues a Madrid desde havia muito. De maneira que, finalmente, a Lei de Normalização e os seus derivados conduziriam à implantação por força do modelo enxebrista: ou seja, o que levava o galego a ser “una lengua regional más de España”… desconexa do mundo da lusofonia.
Quanto lhe devemos desta atrocidade ao professorzinho Filgueira Valverde? Sendo na altura Conselheiro (ministro da comunidade autónoma da Galiza) de Cultura impulsou no ano 82 um Decreto de Normativización do galego que fechou as portas à esperança e provocou uma guerra intestina que três décadas depois não acaba.
A quem, mundo adiante, se lhe disser que uma obra literária não pode concursar como não for escrita com tal ou qual norma dentro da mesma língua, muito provavelmente responderia que isso é maluquice. Se a Literatura está por cima das línguas, não o vai estar por cima das normativas literárias?
Na Galiza, não. E isso devemos-lho, claramente, a um ministro que a Irreal Academia do Impaís homenageia como ínclito Pai da Pátria.
Acabo: Filgueira, grande polígrafo, sim, mas míope. Como outros que o aconselharam. Não enxergavam as consequências do política regionalizadora, dialetalizante que estavam a consagrar. O seu ponto de vista (se algo viam) foi madrileno.
Caia logo o sangue sobre as suas cabeças. Como José Fernando Filgueira Valverde era o mais alto da tropa, fique bem molhado.
NOTA: A fotografia que acompanha este artigo foi obtida da Wikipédia.
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