A imagem de Portugal na Galiza
(Através Editora, 2016)
TRECHO EM ANTECIPO 1
(as ‘Sequências imagéticas’ com que abre o PREÂMBULO)
«–Sempre vos encantaron as portuguesadas. Non sei que lle vedes a ese país. Sácalos de cociñar bacallao e de falsificar roupa de marca e quédanse en nada. ¡Estragar así unha revolución! ¡Hai que joderse!»
A citação está tirada da obra de teatro Rastros (1998) de Roberto Vidal Bolaño (Compostela, 1950-2002), um autor que mesmo tendo sido algo perturbador para os poderes já foi homenageado em 2013 com o Dia das Letras Galegas. A frase é proferida por Moncho, o mais descrente dos três homens que convergem numa sala de hospital convocados por Esther, uma suicida. Moncho fala em primeira instância para Iago, um preso do Exército Guerrilheiro do Povo Galego Ceive (organização independentista armada, operativa entre 1987-1991) que acaba de referir-se ao seu acordar ouvindo os da Quinta do Bill. Os que são como Iago sempre gostaram de «portuguesadas», acusa com ironia Moncho. O terceiro, Xan, economista brilhante, não parece chamado para o assunto. E quanto à suicida, fora de palco, que sempre almejou ser livre como os pássaros, bem podia representar o símbolo espiritual de um país exausto de desejar e fracassar, o país ainda atraído pelos tipos como Iago. Uma Galiza cujo terço dos poucos amigos que convoca já acham capricho inútil qualquer fascínio por Portugal. É o que acontece com o mais cético em ideais, Moncho, o escritor coincidente em propósitos mas não em métodos, um tipo entregue ao status de fazer bestsellers. Para o outro terço –ou mais– dos pragmáticos como Xan, especialista em estrutura económica que vende eletrodomésticos, portuguesadas até passam desapercebidas. Mas de qualquer modo o encantamento por elas continua aí. E a sua História dilatada.
A frase, com os seus castelhanismos, com a sua ortografia espanhola que se pretende «oficial» para o galego, poderia elevar-se a metáfora, a síntese imagológica aproximada, do entendimento atual de Portugal por parte da Galiza. No seu contexto e explicação será imprescindível invocar um processo que durou séculos e foi acumulando emaranhados matizes cujas consequências ainda perduram. Ao seu esclarecimento completo, nada simples, poderíamos dizer que dedicamos estas páginas. Se o início se torna teatral, se o informante parece parcial, vamos proceder ao seu processamento cronológico a partir de mais um ponto de apoio no presente. Variamos agora espaço cénico, ângulo e observador, descemos do palco e até procuramos um analista externo –veremos que os dados recolhidos podem ter significado parecido, com um acréscimo da perplexidade portuguesa diante do «encantamento galego com portuguesadas».
Esta segunda cena acontece no palco real da rua e está relatada em mais de um lugar pelo antropólogo que a presenciou. Com ela abre um capítulo de livro significativamente intitulado «Portugal na Galiza» (MEDEIROS, 2006: 223) e serve igualmente para medir o arco do presente implicante do passado que aqui se pretende convocar. Sucede em Santiago de Compostela na manhã de 25 de Julho, dia da Pátria Galega, de 1999. Uma excursão de portugueses das proximidades de Braga canta nas ruas e ao grupo vai juntar-se um rapaz galego, que dirige o coro para entoar «A Laurindinha», com várias interpretações «cada vez mais uníssonas e entusiasmadas, que chamavam a atenção de quem passava». Quando o canto esmorece, o rapaz encerra com um «Viva Galiza Ceive! Viva Portugal!» (quer dizer, Galiza livre, solta, liberta). Os portugueses, especialmente o padre que os acompanha, ficam inquietos. Desconfiam que aquilo possa ser talvez «político», num dia em que o rei de Espanha e o presidente da república de Portugal estão em Compostela. Para eles o «espanholito» parece um maluco.
Na situação, real de rua, a minoria galega reduzida a um indivíduo manifesta entusiasmo com Portugal. O entusiasmo galego é suspeito inclusive para uma maioria portuguesa que representa o grupo – estranhado com a conduta de quem identificam com outro estado. E o observador António Medeiros explica pontualmente como «as referências a Portugal tiveram uma grande notoriedade na definição do discurso galeguista ao longo de várias épocas» (MEDEIROS, 2006: 225). No seu livro não deixa de mostrá-lo, do século XIX até ao final do XX. Mas nem ele, que está informado e tem por alvo o estudo do nacionalismo, deixa de evidenciar resíduos da mesma atitude de estranhamento. Acha curiosas as formas de familiaridade. E de igual modo manifestações como lusismo ou reintegracionismo. Na devida altura voltaremos sobre isto, mas celebrar a fraternidade de Portugal com a Galiza em confronto com a presença dada por opressiva do Estado Espanhol, na comunhão de um momento lúdico precisamente no ‘Dia da Pátria Galega’, é uma estampa isolada menos estranha do que parece – na sequência da imagética que um relacionamento de vários séculos acumulou.
Essa História dilatada, condensada com algum rigor, é o que hoje também aqui perseguimos, recortando as estampas mais significativas.
***
TRECHO EM ANTECIPO 2
(a ‘Distância focal’ com que fecha o PREÂMBULO)
Analisar as representações das imagens de alteridade entre sujeitos, povos, etnias ou nacionalidades, tem recebido propostas procedentes das mais diversas áreas disciplinares. O denominador comum terá sido porventura acentuar a importância de uma ancoragem em historicidades concretas cujo conhecimento permita compreender os relacionamentos dinâmicos. O presente trabalho adere à mesma recomendação. E requer advertências indispensáveis. Porque os métodos que sociólogos, antropólogos, etnólogos, historiadores das mentalidades ou comparativistas da literatura em geral aplicam, dando forma a estudos de uma imagologia do outro, por via de literatura e para-literatura, testemunhos de imprensa e estampas, canções, caricaturas, etc., instalam-se numa distância reflexiva que supõe e até exprime um apriorismo fundamental: quando se propõe analisar uma heterogeneidade ampla como esta, as imagens que estudam são referidas do estrangeiro (MACHADO, 1988: 77). Aqui vamos perseguir a História e transposições literárias e inventários da representação da portugalidade, teimas, fobias e filias, à procura inclusive dos casos redutores do estereótipo. Mas se todas essas formas «constituem, de maneira inequívoca, estável e permanente, as manifestações mais nítidas duma interpretação», no nosso caso, só de maneira progressiva serão «do estrangeiro», faltando durante séculos a consciência de fronteira na própria fronteira, e havendo ‘permeabilidades’ contrariantes quando esta se instala definitivamente. A complexidade da relação entre os polos que abordamos questiona o próprio conceito de outridade em muitas etapas das ditas historicidades partilhadas. E oferece uma flutuação que vai desembocar nos extraordinários antagonismos imagéticos de épocas mais recentes.
Por outro lado, tendo em conta o dilatado relacionamento Galiza-Portugal, que remonta aos primórdios da própria existência do país em foco, existe grande quantidade de itens potenciais a considerar no encontro/desencontro, entranhação ou vizinhança, de troca e afastamento, numa circulação ora profusa ora impedida de ligações de todas as ordens que requerem explicação de contexto. Decidir, na dita estratégia geral de ancoragem em historicidades concretas, as prioridades, escolhas, vertentes, os elementos que sem deixar de ser representativos mostrem em espelho galego os rostos portugueses de tão prolongado trato, e que o espelhado fique diáfano, é um exercício na corda bamba. Pretendemos a tensão máxima no cabo esticado entre os lados por meio da síntese, mas não podemos evitar a flexibilidade dele ao acautelar os passos com explicações interculturais para o entendimento da figuração de Portugal na Galiza. E até para o mesmo entendimento de Portugal no mundo. O ordenamento será essencialmente cronológico. A Historiografia estrita dos primeiros séculos imprescindível. Depois, será o uso de etiquetas historicistas que a cultura galega tem utilizado prolongadamente para estudar a sua caminhada cultural e literária que nos guie. Nelas inscrevemos os elos capitais da perspectivação de Portugal a partir da Galiza, em cuja compreensão esperamos ver como se revela de interesse e se justifica a indagação no passado – que explica algum presente do país do lado.
Advirta-se ainda aqui que, ao tirar uma fotografia, a falta de distância física pode ser um problema para manter a imagem nítida. Isso apesar do deslocamento que se possa efetuar na objetiva em relação à película. Na representação de Portugal durante séculos, com quem a Galiza tem prolongado os laços de família via emigração e troca continuada, partilhando ademais com grande parte do Norte um «conjunto impressivo de similaridades –climáticas, geográficas, linguísticas, etnográficas etc.–, como ficará sugerido por uma comparação de resultados de diversas disciplinas científicas exercidas em cada um dos contextos» (MEDEIROS, 2006: 23), existe um efeito frequente de grande angular. Falta distância. Inclusive com a fronteira política com firmeza instalada, a consciência diferencial do estrangeiro só se afiança com a intensificação do centralismo espanhol em diversas épocas. Contrariando a diferença, tem funcionado precisamente a recordação dos antigos laços históricos, literalmente familiares, em especial em trechos amplos dos últimos cem anos, quando a distância estrangeirizante mais se consolidara, como modo de alegação da própria identidade galega. Portugal tem aparecido assim, na perceção certamente de uma minoria ousada e intelectualmente ativa, como signo de redenção nacional na Galiza. Ao lado do alheamento e ignorância ampla da parte mais alargada da sociedade.
Se a proximidade física, sim, pode ser causa da distorção do objeto e da perspetiva, na apreciação do presente caso não deixaremos de admitir que também concorre o problema do autor e a sua afinidade com o tema: à falta de espaço para recuar e disparar junta-se a inutilidade da tentativa porque os primeiros planos andam entranhados na sua lente. E ainda, para além das vontades de distanciamento, está a consciência de uma impossibilidade para realizar comparações entre o real que aborda e o real tirado, entre a imagem e o referente. Sobre todos estes riscos só se pode advertir que se conhecem e que se vai demandar o caminho mais honesto. Busca-se a História, procuram-se representações, ordenam-se no tempo. E há o melhor empenho por usar lentes diversas e ângulos complementares. Incluindo tomadas de espetadores isentos. Quanto ao real, confira quem ler.
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