DO POSFÁCIO DE ALMAS EM TÁCITAS, POR SILAS CORREA LEITE
[Desvãos de Almas Tácitas – a Poesia Que Lavra a Terra, Apalavra a Alma do Cantador]
“É necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas estão dentro de nós, onde os sentimentos não precisam de motivos nem os desejos de razão.
O importante é aproveitar o momento e aprender sua duração, pois a vida está nos olhos de quem saber ver.”
Gabriel García Márquez
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A Internet tem disso: coloca você em você. E permite uma salutar troca universal, via mundo da web. De fio a pavio, nesse mondo cane, o escritor daqui e dali cruza informações, paira sobre outros continentes, leva a sua alma chã, a sua tez chã, o seu grito de amor, de dor, de excluído, ou cantárias e bendições na arte do bem-virá, e assim diz seu criar, sua lavra, seus curtumes, fermentos e iluminuras. Comecei a colaborar com algumas revistas eletrônicas e, um pé na África de ancestrais da parte do meu lado materno, conheci amigos de Angola e Moçambique. E entre eles fiz-me amigo por assim dizer virtual –e ganhei um filho virtual– o Lino Mukurruza. Sentir-se em casa é se sentir dentro do proprio coração?
A catarse criativa de Lino é bela, seu fazer poético é diferenciado, ele expoe cenários emergentes da alma, dizendo de seu olhar acima e sobre todas as coisas, como quadros cênicos de almas lavradas e assim empalavradas. Diz de escuros, pássaros, logo também enuncia mel e sangue, e assim faz a sua galáxia existencial de amor e dor. Venera o silêncio. Evoca a vida. Provoca-a. Vejamos:
na claridade
somos duas
imagens reais
e na calmaria do teu ser
sei que te paira um segredo:
esfinge
No seu tear criacional, corta imagens, decompoe, alumia o cênico, amoldurando seu canto lúcido. A nudez noturna da alma arrepiando grandezas, barulhices e gotas de si apalavreadas. Parece uma poesia à margem, mas que está sim, muito bem dentro do que compoe, diz a que veio enverga. Desvãos de almas salpicando seu chão. O cantador canta a sua terra. Flashes epigramáticos da infância, da adultice, e ainda registra os escombros da vida. Um poeta e tanto.
Quem toca um livro toca um ser humano (Walt Whitman), ou quem toca um ser humano sensivel toca toda uma vida-livro? Lino Mukurruza é assim. Quando você menos espera, ele atiça a fera da criação, e sola seu banzo, seu fado. E toma poesia. Porque é do ramo, e nesse oficio coloca para fora as suas tintas, espigas e lavrações do sensivel de si. Remos em manchas. Destrincha. A nudez de tantos prismas.
Você se surpreende a cada verso, estrofe, confeito, e o reafirma: poesia pela propria natureza. O ser em busca. Que sangria desatada é a buca? A vida é um solo de amor, de horror, e nisso tambem tem cerzimentos, encardimentos. Basta a palavra ser trabalhada por quem vê e pensa sobre o que vê, destilando livrações, voos e cortinas.
Porque a poética de Lino é assim, tira o véu, mostra o arremate, o arrepio do ‘versentir’, perfila palavras como se cascudos alvos cavados pela mão-do-olhar, e entre trilhas, sopra a sua eletricidade criativa latente. Escrever é apontar estados sígnicos, redimir conhecenças, marcar presença na tábus de carne da vida. E Lino Mukurruza faz muito bem isso.
Do outro lado do oceano, em terras afrobrasilis, eu comungo com minha “dor poesia”, crio um elo mais que lustral com Lino, pontas que se ligam, que se juntam em palavras de trocas, em versos que unem, em lágrimas, estadias e vivências desatadas. Nós invertidos, inventários de partilhas.
Porque a poesia de Lino é isso: terra arada, pondo pra fora seus lamentos, ao mesmo tempo em que uma ode à vida, à procura, à libertação do ser de si. Sim meus irmãos, a poesia não substituí o humanismo, mas preeenchemos espaços íntimos entre átomos, e blindam nossa alma lixada de outras sofrências de ver, saber, conviver e não poder mudar. Mas podemos dar testemunhos de nessa travessia, registrando, dando cores, feito antenas da época como diria Rimbaud. Somos todos uma toda África: desterrados e portadores dela, nativos residentes.E nos comunicamos pelos novos tambores do mundo virtual, fazemos soar nossas almas irmãs… elos de uma mesma corrente, degredos, negredos…
Quem não enfrenta seus medos, na arte que seja, nunca vai saber o que se restou, o que realmente é no corpo do todo. Enfrentar os medos é criar responsabilidades além dos abismos, largar os vícios de tentar o indizível, mas provocá-los, trabalhar muito a pedra da lavra, a mó das farinhas palavras, estudar muito (ocupando tempo, espaço físico e a própria mente), não errar mais além das heranças de ter sobreviver, acreditar na arte como quem teima e reincide no uso das resplendências vagas, se redime criando assim. Em tudo que se move na arte há tempo de se recuperar as pegadas das trilhas. Mas sem criar podemos não chegarmos nunca à lugar nenhum, ao nosso lugar de estar e permanecer na via láctea, nem ao mais profundo sentimento a respeito à nós mesmos. Como diria António Cabrita, ‘dá medo fechar os olhos num mundo em que as gotas de chuvas não são inocentes’.
Nesses tempos tenebrosos, a ceia da poesia traz ressurgência, forja crimes, pincela nojo, escárnio e barbáries, mesmo que às vezes seja doloroso para nós, nos colocarmos entre o medo e o nada, e ainda assim produzir lágrimas.
POEMAS DE ALMAS EM TÁCITAS
[…]
existe um XUANGA
na pupila do verbo
onde na margem
reina um rio
o areal
no espaço de um corpo
mergulhado
igual a âncora que nele afunda
no fundo distante da alma
do mar
do lago
e da praia
que é praia
no lago
areia
no reino
da margem
de tudo.
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[…]
sinto tanto
um cântico antigo
de cinzas
queimadas
e um perfume desagradável
a lambuzar a língua de um ciúme
que se perde na raiva de um cão
na garganta do teu fonema
inútil.
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[…]
(ao Eduardo Costley-White, eterno poeta)
flutua em mim
uma palavra pálida
no rosto da mão
qualquer palavra serve
para contemplar a imagem
do vento que esmurra
a folha do antigo galho
no vento a flutuar
como um mar
como o ar
no tempo
uma palavra é um instante.
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[…]
há um silêncio que esmorece
e o vento simplesmente atrapalha
range com garras sob uma força
desconhecida
e os tédios são um tanto
constantes
pelos dias
e alguma sílaba de ansiedade
nasce numa espera
enfim
um só silêncio
nosso silêncio
teu silêncio
nossa nudez.
in Almas em Tácitas (Lua de Marfim, 2015)
LEITURAS
Quem lê E. Hemingway, D. Thoreau, W. Whitmany ou um T. S. Eliot compreende a carto-viagem-poética que se dá de forma singularmente única em Almas em Tácitas. Aquela graça que nos leva da letra à imagem e da imagem a outro plano mais periférico – o da metafísica. Esta sorrateira tacitude que nos reinventa à semelhança de uma catarse que exala um som ancestral de pássaros que muito se confunde com a oralidade que se co-penetra no assombro da nossa metáfora de existir.
Verdade é, que muito me perco no labor cada vez mais conciso da poética de L. Mukurruza. E, assim, aquele pequeno trecho da Introdução de John D. Mac Donald ao belíssimo livro de Stephen King, O Turno da Noite, reabre-me na vontade de dizer que escrever poesia é exercitar o crescimento cujo fascínio reserva-nos o dom da maturidade e sabedoria. Neste exercício – inventamos e reinventamos a vida. No entanto, “uma pessoa tem de ter um gosto especial pelas palavras. Uma pessoa tem de querer enrolar-se nelas. Tem de ler milhões delas escritas por outras pessoas (…) depois, a gente tem de começar a conhecer-se a si proprio tão bem como a conhecer as outras pessoas. [Por que] um pedaço de nós está em todas as pessoas que podemos encontrar um dia”. Nisso Mukurruza bebeu e demonstra em Almas em Tácitas um novo modo de poetar o Ser na poesia.
Dionísio Bahúle, da leitura prévia.
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Dentre as muitas possibilidades de fazer poético, diria que Lino Mukurruza é um esteta da fanopéia (nos termos de Ezra Pound). Como só me interessa o que não é meu (na trilha de Oswald de Andrade), é esta sua potência (diferente da minha) para compor belos quadros com a tinta das palavras que me estimula e renova (meu forte é a melopéia, os jogos verbais musicais).
Vejo neste livro belos voos nas alturas do sublime amor, morada de estrelas, mas também quedas abismais na terra dura do desamor, chão de merda! A propósito, tem poeta que só olha para a merda; há poeta que só olha para a estrela – Lino mira ambas! Minhas saudações entusiasmadas à sua obra!
Paulo César de Carvalho, da leitura prévia.
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