PREFÁCIO
Os Intraduzíveis MODOS da palavra Poesia.
“Mostrem-me um homem/ que não haja transgredido/ e eu direi: Eis, um homem vulgar/ porque os génios transgridem/ Mostrem-me um homem/ verdadeiro homem que tenha sido/ um cidadão bem comportado/ e mais uma vez direi: – Sim/ era indubitavelmente um cidadão/ conceituadamente banal/ que ninguém é grande no heroísmo/ no amor e na objecção/ sem se exceder”.
(J. Craveirinha, 2012: p.114).
Há uma certa tensão entre a palavra e o escritor. Entre o silêncio e alguma coisa acima da decência de quem faz a arte. E este “certo acima” de alguma coisa chamaremos todos de loucura – este modo único de endoidecer e fazer da arte um multiforme substantivo da vida, ou um alimento da fantasia aberto ao torneamento do absurdo. Ora, ao percorrermos a inesgotável tecitura poética de Lino Mukuruza, depreende-se qualquer coisa de raro ar dramático à semelhança de outros grandes nomes da cultura literária como é o caso de Eduardo White, José Craveirinha, Herberto Helder, Cassiano Ricardo, Gertrude Stein, Emily Dickinson, Charles Baxter ou dum Flanery O’ Connor.
Se nestes todos o devaneio artístico-literário é explorado como numa codificação, enquanto espaço de reafirmação, negociação, criação ou resolução de saberes de todo um holismo existencial, há que concordar com o que Élie Faure disse: em cada um “a expressão é como uma corda tensa entre as duas extremidades de uma arco. Uma dessas extremidades é, de certeza, a acção do meio social e histórico. A outra, a reacção de um coração. De uma à outra estabelece-se um sistema de equilíbrio suspenso entre os erros e os excessos sentimentais que caracterizam a época e o protesto secreto que acordam nesse coração”.
Bem, durante os dias na companhia do “Em Ínfimas Galáxias do Sentir”, duas coisas surgiram-se-me: uma é a do conceito de “ínfima”, que nos transporta à ideia de periferia; de deslocamento em relação ao comum, ou ao real. Há neste lexema um esquema que se opera entre o mais distante e o presente; um jogo de des-ocultação entre os dois elementos. Uma outra, é a de sentir. Esta, nos remete a uma certa interpretação solidária a Filosofia. Este conceito «sentir» vem do particípio presente sentiens, sentientis, (sentir), do verbo latino sentire. Este verbo exprime uma certa orientação distinta a partir de dentro, do lugar mais distante da nossa interioridade. A pergunta que nos surge é: Quem dispõe desta aparelhagem complexa de arrumar as emoções para além do ser? Quem tem esta consciência de periferização para além do homem?
Estas perguntas levaram-me a uma única resposta que vem seguindo Mukuruza desde o “Almas em Tácitas” – o Ser. Este é o único que tem a decência de reconhecer em si a consciência de seus estados de emoção. Na verdade, este jogo de palavras é chave-mestra para o devaneio que se co-penetra ao processo de despragmatização que uns entendem como exercício de transgressão ou de desvio de norma, e outros, como eterno dialogismo entre o centro e a periferia. Estes dois pólos se metamorfoseiam como horizonte de especulação que Lino Mukuruza nos propõe em mais um parto apelidado por “Em Ínfimas Galáxias do Sentir”.
Ao dialogar com a poesia como retorno ao estado das coisas na sua originalidade, ao mesmo tempo volta a nos lembrar que ela é, pois, “a epopeia da linguagem, o nascimento e a formação”. Quer se trate de um como do outro, dentro de qualquer objecto – reside matéria, metro, a forma de ser só. Há neste texto algo de muito engenhoso. De poético-filosófico. Aliás, há quem diga que a Filosofia é poesia desenfreada; que se perde no ecletismo da racionalidade. Nisso, a poesia como arte de captação dos movimentos da profundidade humana suplanta-se ao se vestir de metáforas – tropos que nos levam à periferia das Ínfimas Galáxias do Sentir. São estes que nos segredam que o lugar onde o sentimento mais profundo dum povo se expressa tem um nome – chama-se poesia.
Ora, Que importância tem sentir poesia? – sem que o tacto seja mente. Encontramos sob a interrogativa do signo as ambivalências do Ser e da Poesia que resultam em um salto migratória à apoteose do artista que afirma assim, algo que o filósofo não faz – emprestar vida à palavra num eterno reajuste de fronteiras que ao fim de tudo, o corpo se serve de janela de acesso à visibilidade dos dramas do nosso modo predicativo de existir. Caminhemos/nem sempre são destinos/mas ninhos/na mente da gente. Ou: Noite/sinto tod’a meno-pausa/iguala morte/do teu beijo íntimo.
De texto a texto há uma certa originalidade que Mukuruza na sua maneira de jogar com a palavra nos quer deixar como legado não só de carácter lúdico, mas também da catarse que tem marcas no modo como arquitecta o seu verso. Irritam-me os olhos: – nas noites, que não descrevem-me os hábitos. Para um leitor. Apenas um leitor preso na regra percebe como a completiva e, igualmente a integrante “que” seguida duma partícula de negação “não” deveria atrair ao pré-verbal o pronome reflexivo “me” para ser: que não me descrevem… O gosto nisto é a liberdade. A liberdade de transgredir como sentimento de distanciamento.
Esta consciência de erro não é de hoje. Podemos encontrar em “O Grande Gatsby” de Fitzgerald, bem como em “O Morto” de Joyce. Este propositado modo de brincar com a palavra não significa desconhecer o mecanismo do funcionamento da língua. É um suprimento que o artista usa para se socorrer nas suas criações. Por exemplo: no ensaio sobre Marquês de Sade, Roland Barthes chega a afirmar que a poesia é mesmo isto: est le langage même de transgressions du langage. Há que referenciar que, por mais importante que seja o leitor no reposicionamento dos jogos de linguagem na arte, o distanciamento do poeta no cânone poetológico surge da necessidade de expressão adequada ao húmus do seu lirismo como navegação muitas vezes individual, sem com isso deixar de lado os elementos estéticos.
Este homem é tanto um poeta quanto um filósofo que semeia suas sementes em forma de versos. Esta maneira é a que chamaria de Filosofia Primeira ao conseguir socorrer-se das imagens que definem a vida trinária da metáfora como desvio, empréstimo semântico e substituição. Em mim apenas a voz: – sente a alma rocha/imagem, lugar ou ilha à casa. O recurso à imagem confirma a teoria segundo a qual ela é o dispositivo que ajuda no des-velamento das realidades múltiplas. E o estilo meio que complicado de decifrar o sentido nos lembra The Daughters of the Late Colonel, de Katherine Mansfield. Aqui, Mukuruza e Mansfield partilham este certo aspecto “pirotécnico, empregando metáforas, comparações e torneamento de frases que são o equivalente literário de um espectáculo de fogo-de-artifício”.
Sem dúvida, o poeta que L. Mukuruza se faz, de algum modo, personifica também o homem que aparece por meio da linguagem originária que se dá e se entrega ao ser. Há que aceitar sem enfeites que o universo que Mukuruza nos oferece é inesgotável. Cheio de outros sentidos que as portas de cada texto nos ajudarão a encontrar. Mas o que seria duma nação sem o ar que vem do pulmão dos seus poetas? O que seria da humanidade sem o tecido terapêutico dos seus poetas? Quem é o povo senão na membrana da voz dos seus poetas? Quem são estes deuses que, ora andam de mãos dadas connosco; outras vezes, se distanciam para nos falarem daquilo que vai além do nosso quotidiano modo de dar sentido ao mundo?
Dionísio Bahule
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15 de Dezembro de 2015.
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