NOTA DE PALAVRA COMUM: agradecemos a Vergílio Alberto Vieira que enviasse para a sua publicação nesta revista do texto lido em Correntes d’Escritas deste 2016, sob o nome de “Quantos livros tem um livro”.
Da voz
que os ditou, ninguém
de todo a origem saberá.
Uns foram pedra,
por eles se conhece o destino
do mundo; outros, oferenda
da terra ao sol
em nome das mãos
que os escreveram.
O que os olhos não vêem,
o que a boca não canta
dos livros são fulgor divino.
A marca de água
assina cruelmente essa suspeita.
Fosse eu Pessoa, que para si mesmo desejou ser “leitura variada”, ou Paz que, em Águia ou Sol?, recorreu às antigas civilizações para ler o destino nas linhas da palavra de uma folha de figueira, certo estaria de que o livro não tem que ser fundado, é ele próprio fundamento.
Acontece, porém, que o livro, tal como Deus, não indica o caminho, quando muito, à margem do equívoco que, por vezes, leva o leitor a pensar que o livro é caminho, o que de um livro se espera é que ele aconselhe a caminhar.
Colhendo o ensinamento de palco, conferido a Tito Andrómico pelo incontornável Shakespeare (e em versão o’neilliana) a única graça que podia ser emprestada ao meu discurso é que me falta a mão para com o gesto o apoiar.
Voltemos ao tema, por agora, orientando o canto de sereia que é saber: “Quantos livros tem um livro” para as nascentes da obra e do leitor.
Ainda em fase de legitimação criadora de que a matriz primordial será pedra angular, muito do poder que do livro fará factor de entendimento civilizacional, de diálogo de culturas e pacificação entre povos e nações, à resistência ética que dele faz reserva moral; e, da história do livro, interrogante desígnio do homem –há que reconhecer que o livro ainda hoje (e sempre), dos pontos de vista antropológico, e filosófico, nunca outra coisa foi, senão poder em devir.
Nesse sentido, e enquanto os 117 mil títulos da biblioteca do Grão-Vizir da Pérsia, Abdul Kassen Ismael, não desnorteiam os 400 camelos que, desde o séc. X, como navios do deserto, não perturbam a ordem alfabética, que a bom porto os ajudará a chegar um dia, tudo quanto possa contribuir para acelerar, senão o fim do livro tal como o conhecemos, mas o fim, por agora, do logos que Steiner assinala como propulsor da retirada da palavra num mundo em mutação que abalou o saber das coisas, das identidades e equivalências legitimadoras da personalização, que o individualismo consumista e a despolitização ameaçam, dir-se-á que é cada vez mais urgente repensar o livro em função dos procedimentos, com que as mudanças históricas, e de substituição do antagonismo de classe pelo reforço das realizações emocionais que a contemporaneidade tem levando ao limite, ao ponto de, sem escrúpulos, sacrificar o livro, drástica, e irresistivelmente, à quantificação e sobrevalorização hiperbolizadas da imagem.
Tomando à letra o imperativo ético, e de cidadania, que levou Jean Baudrillard, em Le paroxisme indiférent (1977), a alertar para a ameaça que pairava sobre o mundo contemporâneo, há que reconhecer que nunca tanto foi necessário que ao livro, na acepção nobre da essencialidade que o elege como alicerce da edificação da consciência humana, se tornou necessário conferir meios que evitem transformá-lo no peão que uma ciência política desviante desloca aceleradamente a favor de finalidades tão degradantes (leia-se: perversas) desenvolvidas e praticadas por economias devastadoras, que o malabarismo empresarial pôs ao serviço do capitalismo selvagem que pesa, como espada de Dâmocles, sobre a humanidade.
Confesso que não era nesta direcção que tencionava intervir, que desejava orientar a minha participação neste evento, e em particular nesta mesa, subordinada ao tema: “Quantos livros tem um livro”, se outras razões não houvesse para contrariar o catastrofismo abordado noutras edições das Correntes d’Escritas.
Deixando de parte o reality show para que facilmente se descai, e até pode ajudar a conquistar aplauso e simpatias de ocasião, permitam-me passar ao lado da flagelação que, depois da Quarta-feira de Cinzas, convocará em breve para os Passos da Cruz.
Como do povo disse Ezra Pound, o bom fascista, que apesar de venerar Mussolini, tanto a poesia enalteceu: “Nada promove o livro a não ser a nossa conversa.”
Tenha, ou não, livros dentro –o que o douto Francisco Manuel de Melo não pôs em dúvida: “O livro trata do que vai escrito dentro”- tudo leva a crer que o livro, como a rosa de Silesius que: não tem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si mesma, nem pergunta se alguém o vê.
Por que havia o livro de perguntar se alguém o vê, se não há memória de alguma vez o livro perguntar se alguém o lê?
Diógenes, por exemplo: pelos vistos não lia, ou porque não tinha livros, ou porque seria incómodo lê-los, segundo a lenda, dentro da dorna em que, durante tempos, viveu.
Mas não disse o outro que ler é viajar? Pois bem, então Herberto Hélder devia ter escrito, no relegado Retrato em Movimento (1968) não o que disse: “Aprendi a viajar”, mas: “Aprendi a ler, sentei-me, e achei pouco.”
Anos depois, corrigiu, se sentiu remorsos: “Qualquer vagar é de muita pressa, e a rapidez lenta.” Ao livro em que isto disso deu o título de Cobra, corria o ano de 1977, e não voltou a viajar.
Com o passar dos anos, os livros mudam de pele, sentem passar por eles os dedos salivados do leitor, e ignoram que a tiragem os pode condenar à guilhotina. Não lhes cabendo controlar o número de edições, deixam ao diabo que os carrega saber se, afinal, também deles o nome é legião.
Assim sendo, não admira que, uma vez por outra, livros há que, dentro deles, livros têm, mas não tantos que lá não caibam.
Geiler (von Kaisenberg), humanista famoso, não perdeu tempo, quando em 1509, iniciou uma série de sermões baseados, a sério, em personagens loucos nascidos do imaginário de um tal Sebastian Brant que, em 1494, durante o Carnaval de Basileia, deu à estampa um livro de versos alegóricos, com o título de A Nave dos Loucos, ilustrado com gravuras de Dürer, e no qual entendera dar-se ao cuidado de analisar as loucuras e pecados da sociedade do seu tempo: adultério, jogo, falta de fé, ingratidão e curiosidade cobiçosa do novo mundo, não sei de admirável, mas acabado de descobrir.
Entre essas figuras, a porventura mais celebrada: o tolo dos livros, carismático personagem de barrete de dormir enfiado na cabeça para que ninguém se apercebesse das orelhas de burro com que nascera –coincidência, ou não, 500 anos depois, Milan Kundera cria no conhecido romance A imortalidade, a figura do promovido “a asno integral”– falávamos “do tolo dos livros”, não deixando de ser curioso saber se Geiler algum dia se interrogou sobre o tema: “Quantos livros tem um tolo” ou “quantos tolos tem um livro”.
Pois bem, o tolo dos livros não se fica por aqui: usa capuz de bufão com sinetas, e espanador, pró que der & vier.
Quando agita a sineta, sobe à cena um dos sete tipos em quem a “tolice livresca” fez estragos:
a) O tolo que adquire livros por ostentação;
b) O que quer ficar sábio depressa;
c) O que colecciona títulos que não lê,
d) O que só compra livros com iluminuras;
e) O que privilegia as encadernações;
f) O que escreve mal e corrige os clássicos sem os ter lido,
g) O que despreza os livros e não quer com eles aprender.
Se certezas houvesse, seria caso para dizer dos livros o que Victor Hugo dizia da “glória” ao compará-la à cama de Louis XIV, em Versailles: “magnífica”, apesar de tomada pelos percevejos.
Se bem percevejo, seria magnífico reconhecer que dentro de um livro, de facto, livros há. E como atrás de dúvidas, dúvidas vêm –qualquer louco da política insistiria que atrás da dívida, dívidas vêm– confesso que também eu fui avisado de que nada promove o livro, a não ser eu e a minha alocução.
Se, como garantia Elias Canetti: “Uma biblioteca é um auto-de-fé”, que a minha falta de crença dê razão ao santo Ofício, e seja eu, hoje, e aqui, condenado pelo cepticismo que me faz pensar que se “um livro trata do que vai dentro”:
– O livro não tem porquê, e o leitor continuará a ser como disse o filósofo: predicado apaixonado pelo seu sujeito.
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