Arredor daquele microfone criara-se umha lenda maldita.
Nos últimos tempos, qualquer um que falasse por ele ouviria uma reproduçom diferente das suas palavras.
Parecia uma magia cruel que ria de quem utilizar aquele micro para cantar, contar ou simplesmente dizer “a provar, a provar”.
Tudo começara com Letícia Star, jovem promessa da cançom que foi provar a sua voz perante aquele microfone, em frente de um público que era curioso por verificar que a voz de que falavam os críticos era tam espetacular.
Porém, assim que soou a primeira nota, a voz soou a burla, a galinha na procura de namorado.
Daquela, ninguém o atribuiu, como é lógico, ao microfone, pois pensaram que foi apenas uma má noite da cantora, mas umha noite que arruinou a sua carreira.
Depois aconteceu com os monólogos.
Aí já começárom a suspeitar do microfone, pois as palavras do primeiro monologuista saíram em francês, as do segundo tinham um eco a berro de cervo em cio, as do terceiro pareciam de hiena…
Foi nessa altura que alguém acenou para o micro e dixo:
–– Está maldito!
Visto desde embaixo do palco, o micro era normal, prateado, com um cabo preto.
Alguém insinuou mudarem o cabo.
O cabo foi mudado.
– Canta a Maruška! – gritou alguém desde o fundo da sala, escondido no escuro, quando o cabo já fora mudado.
Mas não houvo nenhuma Maruška, só um operário que provava o micro, mas o micro devolvia grunhidos.
Porém, ninguém tinha a coragem de mudar aquele microfone, nem o dono da sala, pois havia algo arredor dele que o tornava intocável.
E ali ficou aquele microfone só no palco, na penumbra, sem ser usado.
Talvez por isso, com o passo dos anos, as pessoas esquecessem por que aquele micro tinha sido exilado a um recanto, sempre entre sombras; talvez também influísse que o local mudasse de dono, mas a questom foi que depois duns anos o micro foi de novo utilizado quando o micro principal estragou.
Mas nada mudara, o velho micro destruiu toda voz que tentou canalizar-se por ele.
E mais uma vez, no fundo da sala e amparado nas sombras, umha voz gritou:
– Que cante Maruška!
Um técnico abriu o micro.
Talvez esperassem encontrar dentro algum hominho cheio de raiva que estragava os sons.
Ou se calhar esperavam que o seu interior fosse mágico.
Nom havia nada disso: o microfone era um velho modelo dos anos sessenta que aparentemente estava em boas condiçons, mas por motivos inexplicáveis boicotava qualquer som que passasse por ele, como se tivesse vontade própria.
– Que cante a Maruška!
Afinal descobriram um velho vagamundo alcoólico que conseguira escoar na sala e que até dormia ali sem permissom.
Ele era que gritava aquilo, sempre ele.
– Por que berras que cante a Maruška? –perguntárom-lhe.
Ele, com voz etílica, só dixo:
– Esse microfone só ama a Maruška.
E sem aviso, atravessando os corredores onde os espectadores ainda procuravam o seu assento, o vagamundo saltou ao palco, vestido em farrapos, com guedelhas até cobrir a metade do seu corpo e unhas de besta, e apertou o micro.
Começou a cantar.
E o micro reproduziu uma voz de soprano como nunca ecoara naquela sala.
Ninguém se mexeu mentes o vagamundo cantava, mas quando acabou, a sala rebentou em aplausos.
Discretamente, os serviços de segurança recolhêrom o vagamundo do palco e levaram-no para fora.
– És tu Maruška? –perguntaram-lhe.
– Nom –respondeu ele sorrindo estupidamente, ainda a aboiar numa nuvem de álcool.
– E por que cantas tam bem?
Aí o vagamundo repetiu a mesma peça que cantara no palco, mas soou como soaria na voz dum miserável alcoólico que apenas pode empreender três frases seguidas.
– Nom entendo nada –dixo o proprietário da sala.
O vagamundo tentou recuperar fôlegos e dixo:
– Maruška é o micro. Ele é ela. Ela é que canta. Apenas têm que pôr uma má voz em frente dela e ela canta, canta como os anjos, nom vírom?
– Mas que parvadas estás a dizer? –perguntárom-lhe ainda.
Porém, o vagamundo adormecera, adormecera até cair em coma, mentes ouvia um remoto “obrigada” no fundo dos seus sonhos.
Nesse mesmo instante, o dono do local mandava que alguém retirasse de vez aquele velho micro.
Mas aquele micro, depois da atuação, no palco já nom estava.
© Texto: Xavier Frias Conde
© Foto: Sara Augusto
You might also like
More from Narrativa
A velha árvore | Artur Alonso
Todos vimos a árvore. Alguns sentaram a sua sombra: para ver dentro deles a escuridão e removê-la. Outros somente se …
Doce Setembro | Morgado MBalate
Morgado Mbalate Doce Setembro Nasci do amor entre o senhor Henrique e a dona Palmira, numa madrugada de 6 de Setembro de …