Pela porta invisível passavam morcegos muito escuros, indiscerníveis, puxando as membranas até ao manípulo da porta, batiam em catadupa nas paredes, fazendo estremecer as paredes laterais cheias de palavras coloridas. Amor, raiva, liberta-te, entre uns tantos palavrões de guerra, verdadeiros gritos da emancipação. A multidão que espreitava, estreitava os laços ausentes, atiravam os braços para cima, num movimento diagonal, empunhavam bandeiras de pano, soltavam enigmas do ecossistema.
O mundo é uma ruína, o mundo é uma ruína, repetiam em uníssono, designação para um desespero vadio, pedintes na miséria, milionários a banharem-se em notas, o mundo é uma ruína, o mundo é uma hipocrisia. Mesmo no meio da avenida, um homem barrigudo, de bigode farto, como a sua conta bancária, passa um cheque chorudo aos que choram de fome, em nome da solidariedade. Pelo seu lado direito passavam as carroças puxadas por burros verdes, zurrando de suor, salpicos de urros espalhavam-se pelas montanhas, sementeiras para reminiscências primaveris, as cigarras continuam nas cantorias, as formigas deixaram de trabalhar, no campo já nada é como antes. Pelo seu lado esquerdo passavam gafanhotos em corrida, provas de fundo, treinando para as olimpíadas, despreocupados da competição, sorriam mas não tinham dentes. O homem, serenamente, molhava a pena numa das asas de um morcego, parecia seu assistente. Permanecia ali, balbuciava uns sons, nenhum era igual, coçava-se como um cão, mas lambia como um gato. Passava a língua no pescoço daquela espécie de dono. Mostrava carinho por ele, tonto, frustrado talvez, pelo levantar de cabeça, a espaços, reclamava da vida, maldita vida, sou ignorado, ninguém me presta atenção, pobre de espírito, que se perde no dinheiro. Comia uma bolacha de água e sal, das mais baratas, carregada de bolor, partiu um pedaço e deixou-o delicadamente na boca do morcego. Este engoliu-o num sorvo. Ao longe, encontrões e murros, desentendimentos de quem acorreu pela mesma causa, reviravoltas, confrontos, serenatas ao luar, chuva ácida. Em cima de um limoeiro, o mocho e dois morcegos, fumavam pausadamente, apreciavam charutos de Havana. Riam-se dos tumultos, manifestamente alterados nos seus comportamentos. Não estou para isto, foi-se embora, ia aos repelões com os pés atados por fios de nylon invisíveis, quero voltar a ser morcego na próxima vida. Os morcegos no limoeiro divertiam-se, sabiam do privilégio. Conseguiam passar pela porta invisível sem abalroar paredes. Os homens são bons construtores, têm habilidade para isso. Mas têm ainda mais habilidade para destruir. Uma mulher despida levava um cartaz, quero a liberdade de mostrar o meu corpo sem me chamarem puta. O velho concordou, levava pressa nos passos, mas logo parou a apreciar. Babava-se todo, o estafermo, macho latino, nunca tratou bem as companheiras. Num prédio uns trolhas com piadas secas. No Jaguar, um energúmeno, com um sorriso detestável, tem a mania que é sedutor, queres vir jantar comigo ao Benoit? O carteiro na lambreta quase que se despistava, travou mesmo em cima de um morcego que bebia água de um charco. Preciso de tempo, preciso de me mentalizar, quero um quarto escuro, uma manta no chão, uma lâmpada para me acompanhar as pulsações, as baratas a trepar pelas paredes, dispersas, ocultas, respirando lentamente e que eu lhes ouvisse os ais. Já dei mais de mim que o homem barrigudo no seu cheque. E pensa ele que já deu que chegue. E dá, para interesse próprio. Dizem que desconta nos impostos.
O morcego bebe um copo de vinho por uma palhinha, nota-se o líquido a evaporar para dentro daquele corpo invisível. Enquanto isso, o cheque foi engordando e o corpo do morcego rebentou, espalhando-se por vários metros em resíduos coloridos e fluorescentes. A porta invisível fechou-se, os morcegos recolheram-se nas lojas de roupa. A mulher despida estava no provador, experimentava duas dezenas de peças, sorria ao espelho, puxava o cabelo para cima, fazia poses. O velho punha-se a imaginar estas cenas, o café sabia-lhe mal, tinha borra no fundo. Pediu um outro, veio igual. Pediu à funcionária para que o deixasse tirar um café como deve ser, eu sou mestre em cafeína, sei como tirar um café espumoso, com sabor requintado, saiu igual. Desmontou a máquina toda, até às entranhas, revirava os olhos, coçava os testículos, punha os dedos negros de sujidade no nariz. Ainda serviu uns dois ou três cafés para experimentar. Deram-lhe os parabéns, que agora, sim, senhor, alta qualidade de cafeína. O proprietário fez-lhe uma proposta de emprego, eu não sei, tenho de pensar, sabe, a minha mulher é muito doente, ela é que cuida de mim, conversa de treta. A mulher saiu da loja de roupa, os morcegos adormeceram e a multidão abandonou o lugar, cada qual para o seu ninho de cegonhas, onde foram deixados à nascença. O homem barrigudo levava o cheque num dos sovacos, cambaleava pelo asfalto e levava o morcego no ombro direito. As crianças passavam e exclamavam, que morcego tão lindo!, os mais velhos olhavam com indiferença. A mesma indiferença com que olhavam a vida, rotineira, de manhã iam para o ginásio, à tarde cabeleireiros, à noite iam ao cinema. Viam filmes de amor todos os dias, mas não faziam amor. Regressavam a casa em silêncio, passavam ainda na casa da sorte, com uma só palavra pediam uma raspadinha, sabiam das probabilidades, hoje vou ganhar, hoje vou ganhar, a ilusão durava cinco segundos, rasgavam o papel, e atiravam-no para o caixote do lixo com o sonho de um luxo distanciado das realidades. A película era esta, sempre o mesmo argumento, o mesmo modo de vida, na casa da esquerda, na casa da direita, no primeiro andar, no último andar. Eram todos iguais, da mesma forma, com os mesmos rostos, fechados, bustos carrancudos, quase estátuas tristes. O mocho e os dois morcegos pontificavam ao longe, misturados com os limões, verdes e maduros, sustento próprio daqueles animais, apreciadores de limonada. O velho bebia um último café antes de dormir, com a mesma borra do primeiro café do dia, que guardava religiosamente num dos bolsos do casaco, junto de um bloco de notas onde tinha apontado todo o processo de desmontagem de máquinas de café. A mulher despida já estava vestida, levava um vestido de noite, pendurava ao pescoço um cartaz com umas palavras enigmáticas, eu sou muito poderosa. O velho ficou impávido, não aprecia mulheres vestidas. O homem barrigudo arrependeu-se, rasgou o cheque, não o entregou na instituição social. Ele mesmo é pouco dado a convivências, faço o que me apetece, eu quero, posso e mando, este universo é todo meu. Muitos pensam assim, mas não têm nada para além do dinheiro. Não dominam a própria mente, não são donos do próprio corpo.
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Carlos Nuno Granja nasceu em Ovar no outono de 1975. Começou a escrever poemas aos 9 anos e aos 11 anos recebeu uma máquina de escrever. É professor do 1° ciclo de escolaridade há 20 anos. Depois de fazer a Licenciatura para a docência no Ensino Básico- variante de Português e Inglês, na Escola Superior de Educação de Viseu, regressou aos estudos, 20 anos mais tarde, para frequentar o Mestrado em Estudos Clássicos na Faculdade de Letras de Coimbra. Fez uma Pós Graduação em Leitura, Aprendizagem e Integração das Bibliotecas nas Atividades Educativas na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Vai iniciar Doutoramento em Estudos Literários na Universidade de Aveiro e está a redigir dissertação na mesma Universidade para o Mestrado em Educação e Formação- ramo de Administração e Políticas Educativas. O seu gosto pela escrita abrange todos os géneros, tendo 20 livros publicados (entre poesia e literatura para a infância) nos 7 anos que leva de vida literária. É o programador do Festival Literário de Ovar desde a sua primeira edição e organiza eventos literários e culturais no Museu de Ovar. Tem um programa de rádio sobre literatura na AV FM (A ler é que a gente se ouve) e um programa sobre a atualidade com diversos convidados ao longo do mês (Sobre tudo e sobre nada). Cometeu a loucura de abrir uma livraria em Ovar (Doninha Ternurenta) e de fundar uma editora. A paixão pelos livros, sempre incompleta, é uma forma de acreditar no mundo e nas pessoas, e de duvidar de todas as certezas.