Roupão Azul nasceu num lugar labiríntico e cheio de espelhos. Um lugar profundo de imagens vivas ou irreais e de uma escuta. Para qualquer autor, falar sobre o seu livro é uma tarefa impossível. Não lhe cabe a missão de explicar ou interpretar. Essa é a tarefa do leitor, do intérprete ou do crítico literário. Na poesia esta impossibilidade de explicar, dar razões é ainda mais visceral porque a palavra poética transporta em si toda uma dimensão simbólica que deverá ser, em primeiro lugar, universal. É a arte da transfiguração do real, da elevação das coisas comuns e banais, atribuindo-lhe um novo estatuto, uma nova dignidade, um novo sentido. A poesia não é literal.
Há, de facto, neste livro e na minha escrita um traço forte da memória, sobretudo, da infância. Partimos sempre de um território que é o nosso, o que construímos ao longo do nosso percurso e que é uma espécie de manta de retalhos, de reminiscências, de ecos e emoções. É no interior desse eco, desse fundo musical que ressoa nos meus ouvidos que escrevo. É como uma pauta musical ditada no silêncio absoluto e que tento materializar em texto, fazendo e refazendo continuamente pelas palavras. Esse texto é sempre um texto inacabado, em permanente construção. Não está e nunca estará concluído. A memória também tem este traço ficcional, de reinvenção. Por isso mesmo, o mais importante não é tentar perceber ou escrutinar aspetos mais ou menos biográficos ou se existe alguma correspondência real com os factos. Muito menos na poesia.
Para mim a importância é avaliada na capacidade que os meus poemas têm ou não de provocar emoções e na apropriação que deles fazem. Na forma como dialogam com as pessoas. Publicar significa tornar público. A partir desse momento entregamos o livro aos leitores e eles serão os nossos maiores críticos. De certa forma, já não é nosso, mas de todos aqueles que o tornam seu. Nenhuma explicação há para dar a não ser aquela que cada um encontra nestes versos e nestas palavras. A obra não precisa do seu autor para se tornar visível ou inteligível. Tem que falar por si e ser maior do que o escritor. Estou convencida que o grande juiz da qualidade literária de qualquer obra de arte é a resistência à passagem do tempo. Não é propriamente o brilho imediato que possa produzir. Esse é totalmente efémero e esgota-se num imediatismo estéril e ávido que écaracterístico da sociedade em que vivemos, cheia de ruído. Adquirir, com a evolução dos anos (e até um certo distanciamento), um estatuto de universalidade, de longevidade, permanecer atual constitui o verdadeiro desafio.
Ainda assim, esse julgamento, essa catalogação e legitimação é sempre conferida por uma comunidade constituída não só por leitores, mas por académicos, críticos e intérpretes. Uma das grandes questões da história do pensamento é a tentativa de responder à pergunta O que é uma obra de arte? As respostas têm sido múltiplas e diversas e não existe um consenso. Esse é talvez o traço mais importante do processo criativo: está sempre a escapar a definições. Contudo, o que me interessa verdadeiramente é saber a forma como a minha poesia, o que escrevo ou ainda escreverei afeta e modifica as pessoas comuns. De que modo é que esta cartografia da intimidade (citando as palavras de uma amiga para quem o meu livro teve um grande impacto emocional), contribui para construir a sua. Para contar uma história que não é só minha. Esse é o maior elogio que um autor pode receber.
Apesar de tudo, tenho constatado que existe sempre uma curiosidade, e que é natural, mas que se sobrepõe à importância do trabalho da língua e da palavra. No caso de uma mulher esse escrutínio é ainda mais acentuado, revelando um preconceito que é milenar e cultural e ainda perdura. O ato criador tem que ser, forçosamente, o lugar da liberdade absoluta. Todo o poeta é um artífice da linguagem. Esse é o seu ofício, sem preocupações de pertença a escolas ou correntes literárias. Obviamente que a época, o contexto cultural e social marca um escritor, mas escrita não deve apenas conter em si balizas geográficas, culturais ou sociais. Tem que alcançar um estatuto mais universal. No caso da poesia isso é uma evidência. É e será sempre a palavra inaugural, o lugar onde o próprio sentido se renova e se metamorfoseia constantemente. É comum afirmar-se que um escritor é, acima de tudo, também um leitor. Contudo, essa condição de leitor não se reduz apenas à leitura de livros ou de autores, qualquer que seja a área, mas à capacidade de ler a própria vida em toda a perplexidade e espanto que provoca. O que constrói e tece uma narrativa é, por isso, algo bem mais profundo e inexplicável. É como fazer parte de um legado, de uma grande ressonância universal que se repete em cada um de nós. De uma certa forma, as palavras dos outros moram nas nossas e
não é obrigatório ler determinado autor ou poeta para compreender e sentir o mesmo. É conseguir dizer a mesma coisa de outro modo. Na poesia interessa pouco compreender. O importante é sentir e é, igualmente, um lugar que se partilha: o gesto criador. Jorge Luís Borges, no seu Livro de Areia tem uma frase que, julgo, traduz bem essa ideia de ressonância, de um legado que se partilha e compartilha
As palavras são símbolos que postulam uma memória compartilhada1
Assim sendo, é somente a partir desse lugar que falo e escuto. Uma descoberta que realizo todos os dias. É o lugar da celebração da vida, mas também da morte, do absoluto, da nossa condição de finitude e imperfeição. De um nada que é tudo. Existem muitos criadores, que são considerados gigantes, cujo génio só se cumpriu completamente no lugar absoluto da insignificância e da morte, no confronto com o fim da vida. Em que o criador e a obra se misturam de forma irreparável. Sem distância.
Ainda assim, a poesia é e será sempre a expressão máxima da vida: um lugar de deslumbramento permanente, dolorosamente belo, de facas afiadas, que nos rasga e remenda constantemente. Até ao fim. Roupão Azul é só a minha primeira tentativa de dar corpo a tudo isto. Não sei se consegui. O tempo e o leitor o dirão ou não.
1 BORGES, Jorge Luís. O Livro de Areia. In Obras Completas III. Lisboa: Editorial Teorema, 1998. p. 31.
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