A Revolução Cultural é um manancial sem fim para a poesia chinesa, uma poesia de “cicatriz” como muitos afirmam e que produziu uma espécie de catarse literária naquele país. Sara F. Costa, poeta e mestre em Estudos Interculturais Português/Chinês, desvela-nos agora o seu olhar pessoal sobre esta arte com mais de dois mil e quinhentos anos e pouco conhecida para o ocidente. Em “Poética não oficial – Poesia Chinesa Contemporânea” emergem versos desde o invisível, um anseio que se rebela entre a queda final e o precário equilíbrio das palavras, já que, tal como a tradutora da obra afirma: a poesia deve ser indócil, insubmissa.
33 poetas chineses de distintas gerações da cena underground, traduzidos para português numa edição da editora Labirinto. Conta-nos, como surge “Poética não oficial”?
Esta antologia surge de um repto lançado por João Artur Pinto, editor da Labirinto e pelo Victor Oliveira Mateus, coordenador da coleção Contramaré. Conheciam a minha escrita, editaram o meu livro “A Transfiguração da Fome” e estávamos na apresentação do livro em Lisboa a beber uma cerveja no Menina e Moça, em Julho de 2018. Eu estudei mandarim na universidade e sempre foi a minha principal ferramenta de trabalho. Naquele momento senti-me preparada para embarcar numa aventura destas, embora fosse ainda um grande desafio. Foi quando comecei a ter contacto com a cena literária em Pequim que comecei a solidificar a minha ideia e a procurar um ângulo para esta antologia.
Depois de uma primeira leitura ficamos de imediato com a sensação de existir um tronco comum nestes poetas, essa voz subterrânea que parece querer muitas vezes rebelar-se contra algo ou alguém. A poesia hoje, mais que nunca, continua a necessitar desse espírito refractário?
A poesia (/a arte) tem geralmente duas opções: seguir a corrente vigente ou ser disruptiva em relação a ela. É quase sempre esta última atitude que acaba por fazer história porque contribui com algo que até ali não se encontrava agregado àquela forma de expressão em particular, tanto a nível de conteúdo ou a nível estético e conceptual. A poesia deve ser indócil, insubmissa até perante a própria linguagem. Quando assim o é, o seu impacto pode exceder a gôndola da sua existência enquanto criação literária e passar para aquilo a que Hannah Arendt chamava de “vida ativa”, a participação cívica e política na sociedade.
Onde podemos encontrar estas vozes? Estes poetas estão publicados?
A maior parte dos poetas desta antologia têm uma extensa obra publicada, mas outros são conhecidos apenas no seio das revistas literárias independentes chinesas. Quis trazer uma amostra ampla, uma paisagem poética da china atual.
“Traduzir poesia é recriar universos, sobretudo quando essa tradução parte de línguas com raízes tão afastadas e de representações geográficas distintas”
Referes que traduzir poesia é recriar um universo. Partindo dessa ideia, quais são as tuas sensações ao traduzir línguas com raízes tão afastadas da tua língua materna?
Sim, traduzir poesia é recriar universos, sobretudo quando essa tradução parte de línguas com raízes tão afastadas e de representações geográficas distintas. É natural que o(a) tradutor(a) traga sempre para a tradução padrões linguísticos, predisposições culturais e tendências estéticas de uma forma quase inconsciente. Interessa-me trazer aos leitores portugueses o poema por trás do poema sem muitos efeitos, mas com a precisão literária possível.
Vives há já algum tempo na China. Como é que essa experiência tem influenciado o teu trabalho de tradução?
Eu estudei mandarim e japonês na licenciatura de Línguas e Culturas Orientais no seu segundo ano de existência na Universidade do Minho e depois tive um ano de intercâmbio na Universidade Línguas Estrangeiras de Tianjin em 2008/2009. Sempre trabalhei com a China em vários setores até ter ido para Pequim e aí me imiscuir mais nos movimentos artísticos da cidade. É natural que se tenha um entendimento mais holístico da literatura de um país quando se conhece a língua e se tem uma vivência no país, sobretudo uma vivência ativa e interessada, disposta a explorar a arte e a cultura..
A metáfora da “noite escura” é usada para referir o período da Revolução Cultural chinesa. Que metáfora usarias para descrever a situação social e cultural actual no país?
Provavelmente usava o termo QR Code (risos), acho que a China atual só pode ser descrita com referências a distopias tecnológicas.
O que poderão ganhar os leitores lusófonos com a leitura desta obra?
Há muito pouco em português sobre poesia chinesa contemporânea. Este livro pretende ser precisamente um ponto de partida para alguns nomes até agora desconhecidos dos leitores portugueses. Grande parte dos poemas selecionados neste trabalho não se encontram traduzidos noutras línguas mais amplamente estudadas por cá, como o inglês e a única forma de aceder a esses poemas é indo diretamente à fonte em mandarim. Os leitores lusófonos ficam assim com o acesso exclusivo a um trabalho que incorpora alguns incontornáveis poemas traduzidos para outras línguas mas que é composto, maioritariamente, por poemas que até agora só estariam acessíveis a quem lesse mandarim.
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“Poética não oficial” – Editora Labirinto (Coleção Contramaré / 33) Autor: Sara F. Costa Cordenação: Victor Oliveira Mateus / Maria João Cabrita
Sara F. Costa nasceu em 1987. Licenciou-se em Línguas e Culturais Orientais pela Universidade do Minho e tirou o mestrado em Estudos Interculturais: Português/Chinês pela Universidade do Minho em parceria com a Universidade de Línguas Estrangeiras de Tianjin. A sua poesia tem vindo a ser galardoada em diversos certames literários. O seu último livro “A Transfiguração da Fome” obteve o Prémio Literário Internacional Glória de Sant’Anna para melhor obra de poesia publicada em países de língua portuguesa em 2018. Tem poemas traduzidos e publicados em mais de sete línguas em publicações literárias um pouco por todo o mundo. Foi convidada para vários festivais literários internacionais em países como Turquia, India e China. Faz crítica literária e traduz poesia chinesa para português. De momento, reside em Pequim onde coordena eventos literários no coletivo artístico internacional Spittoon. “Poética Não Oficial” é a sua primeira antologia de poesia chinesa traduzida publicada.
Autora
– A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos (Pé de Página editores, 2003); – Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial, 2008); – O Sono Extenso (Âncora Editora, 2012); – O Movimento Impróprio do Mundo (Âncora Editora, 2016) – A Transfiguração da Fome (Editora Labirinto, 2018)
Tradução e organização
– Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea, Edição bilingue (Editora Labirinto, 2020)
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