Escutei, numa dessas lives intermináveis da pandemia, uma poeta dizendo que escrevia poemas porque tinha perguntas, porque se não as tivesse faria sapatos. Senti uma imensa tristeza e uma imensa vergonha com essa declaração. Acaso o sapateiro, a artesã não se indaga sobre a materialidade, a energia e a inteligência das coisas? Acaso sua obra não é justamente a resposta matérica, enérgica, afetiva e pensamental que o trato e tacto com o mundo lhe convoca? Acaso um par de sapatos não é o encontro entre as nervuras, a ossatura e as curvas dos pés e a penetrabilidade e impenetrabilidade, a flexibilidade e a resistência do couro, da fibra, da borracha, da madeira, do tecido? Acaso não é o estudo, de suas espessuras, suas ressonâncias, a escuta de seu germen, ou seja, do ponto de partida para a cristalização de uma forma singular? Acaso não é, portanto, assim como o poema, uma estrutura reticular formada por operações físicas, biológicas, energéticas (ou espirituais), pensamentais e coletivas?
Em o jardim das palavras, um desses filmes de animação japoneses tão bonitos, há uma cena em que o protagonista, que é um colegial que sonha ser sapateiro e sempre se escapava das aulas em um jardim, se encontra com Yukari Yukino numa manhã chuvosa. Os personagens não se conheciam, mas o aprendiz de sapateiro não é capaz de tirar os olhos dos pés Yukari. Os mira, apesar da discrição, com intensa atenção, como quem sonha germiná-los, isto é, oferecer-lhes uma estrutural inicial diferente, singularizá-los. Para tanto, os coloca (nesse momento, especulativamente, com uma mirada tátil) em relação com existências exteriores a eles; mede a potência enérgica, a capacidade de modulação da matéria que poderá envolvê-los, adorná-los. Também a suavidade, a temperatura, a umidade, as irregularidades da pele dos pés. Analisa, delicadamente, as condições acontecimentais do encontro das mãos com o prego, do prego com madeira, da madeira com o tecido, do tecido com os pés. Nesse múltiplo a-condicionamento, nessa geografia de elementos metamórficos nascem, posteriormente, umas belas sandálias. Vejam, as sandálias são o resultado da compatibilidade e singularidade de determinadas condições de energia, matéria e desejo. E nessa compatibilidade realizada, todos os elementos são agentes; todos cedem e resistem, impõem e acatam forças, prolongam e interrompem o fluxo do fazimento. As sandálias são essa consistência ativa e dinâmica: elas dançam já na origem. Não convém esquecer que poesia, do grego poíesis e do latim poesis, quer dizer fazer. A elitista e alienante separação entre belas artes e artes úteis é posterior. No Banquete, Platão define poíesis como a causa que converte qualquer coisa que consideremos de não-ser a ser. Dito assim, parece que se trata de uma creatio ex nihilo, mas a cosmologia de Platão fala de um deus artesão, o artesão supremo, o demiurgo, o fazedor. Igual a qualquer artesão que não cria os componentes com os quais construirá sua obra, mas os mescla e os acomoda dando origem a um novo corpo, o deus artesão simplesmente utilizou o material que havia. E o que havia era o caos primordial. Estranho elemento que não era matéria nem imaterial (como as ideia e as almas); um amontoado desorganizado de diminutos triângulos planos, movendo-se em turbilhões, agitados por forças descontroladas e irracionais. Era algo indefinido que, no entanto, existia, não era o nada. Impondo, então, ao caos primordial a ordem e harmonia das Ideias, o artesão supremo cria o cosmo. Mas, vejam, o demiurgo não logra impor uma ordem absoluta, uma vez que o mundo material, o mundo sensível retém resíduos do caos primordial e de seus movimentos desordenados.
Dessa trama toda me interessa puxar três fios:
– A fazedora, o artesão, a poeta cria relacionando-se com algo, isto é, a criação acontece no vínculo. Criar é, na origem, cocriar;
– O cocriado não só apresenta resíduos de caos, como a cocriação só é possível numa relação com o caos;
– O caos mesmo é um entremeio, entre o céu e a terra, entre o material e o imaterial, etc.
Com essas linhas nas mãos, gostaria de alinhavá-las com um conceito belíssimo de Souriau, (que em mim foi Despret quem o levou ao pensar-sentir), o conceito de instaurar. Uma vez que vocês, eu, uma pedra, uma flor, um sapato, qualquer coisa é inacabada, instaurar seria conferir um plus de existência a algo que o conduz a continuar diferentemente a ser de outra maneira. Atentem, a instauração admite a criação, mas ao contrário do sentido familiar desse termo (que nos induz a pensar que a criadora cria do nada, sendo esse nada nada mais que sua genialidade), instaurar nos obriga a não aceitar a ideia de que o criado está totalmente determinado pela criadora. Ao contrário, instaurar, exige, de parte de quem instaura, a responsabilidade de acolher um pedido. A instauradora deve deixar-se instruir pelo pedido situando-se, assim, em um ponto de conexão. Em um enigma, um começo que ativa todas as forças convocadas no processo criador.Vimos que o artesão de Platão não cria desde o nada, senão desde o caos, desde o meio. Mas cria impondo uma Ideia, uma forma ao caos que, afortunadamente, resiste como turbulência, como força descontrolada e irracional. A instauradora, atende a outro chamado. Ela assume que a criatividade é uma sugestão dada pelo sensível; que criar implica coparticipar da inteligência e da capacidade metamórfica das coisas que nos seduzem. Assume que qualquer coisa tem em si a capacidade de devir pontos sensíveis de uma nova reticulação do universo. Qualquer coisa, vocês, eu, uma palavra, uma madeira, uma pedra, cada uma com suas técnicas, com suas alianças sinergéticas pode vincular-se de uma maneira diferente ao mundo circundante reincorporando um novo sentido (um novo modo de experimentar o sensível). Temos aqui uma outra ética, portanto, uma outra poética e uma outra cosmologia, onde cada coisa, para criar, deve deambular nos vínculos e contatos (nas zonas de caos e névoa) e sair desse tato ontológico com um enigma.
Bem, dito isso, peço licença a vocês para me dirigir diretamente à colega poeta:
Cara poeta, as perguntas que te assaltam não estão confinadas no teu crânio; elas são possíveis porque você é um corpo entre outros corpos. Pare, nem que seja um minuto, escute: seu corpo todo pensa, seu corpo todo é abalado pela carne do mundo. Esse poema seu que quer nascer e te atormenta em forma de indagação, incerteza, que parece pássaros encarcerados nos ossos da cabeça, são tormentas elétricas de algum contato exuberante, de um chamado urgente. Um amor? Uns pés descalços na areia? Um coaxo de rã? Um céu azulado? Um filme de Kawase?
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