Bendinho Freitas
Foi em Maio deste ano, no âmbito das 13ª Raias Poéticas ~ Afluentes Ibero-Afro-Americanos de Arte e Pensamento celebrados em Vila Nova de Famalicão (Portugal) com curadoria de Luís Serguilha, que conhecemos o Bendinho Freitas, um poeta que mais do que escrever pinta uma poesia quase naturalista e de linha fina e delicada, por vezes aveludada, mas que também sabe nos amostrar a espinha que a vida nos traz ao pé.
❧
A TARDE ENVERGONHADA
A tarde envergonhada
borra-se de nuvens
sangrando frouxos raios de sol
que escorrem na tela fresca
da linha do horizonte
Pétalas d’águas prateadas
recriam cumplicidades
com o céu da Chicala
pintando de garças
a tarde envergonhada
Versos com água na boca
interrogam as iguarias locais
saboreiam cardumes de estrelas.
deixando paladares de Calafates
perderem-se na língua do céu
Na tarde envergonhada
canoas de pescadores
rasgam sorrisos azuis do mar
❧
LÁGRIMAS INSUBMISSAS
Lágrimas insubmissas
são palavras inconformadas
vertendo dor
quando um bárbaro manto de poeira
insulta as águas do rio Cambongo
O grito de raiva guardado na garganta
se emociona vendo a poeira
sentada no rosto d’água
Lágrimas insubmissas
são mares de bocas prometendo rosas
no horizonte sem mão
são árvores trajadas de pó
amaldiçoando em segredo os mares
onde as bocas dos homens navegam
Rasgam-se as memórias do Sumbe
Sobram ruas cabisbaixas
rezando a desempoeirada fome
dum amanhã melhor
❧
TRANFUSÃO DE SINESTESIAS
Quero ver as tranças límpidas
do rio Luachimo sussurrarem
aos braços do vento.
Quero sentir o abecedário precipitado
das águas soletrar as vertigens do naufrágio
como uma transfusão de sinestesias
Sentir Cassengo vomitar uma cortina d’água
do joelho da rocha onde a boca despeja vozes
largadas ao precipício.
Eu quero abraçar as costas d’água
com a vara escorregadia do pensamento
cutucar o silencioso pensamento
dos musgos agarrados à parede
Quero domar a escuridão selvagem
da gruta e recriar voos mecânicos
de morcegos.
Ver em baixo as águas repousar
na procissão harmonizada do lago.
Ver os borbulhares se curvarem aos peixes
activando no ar pássaros
desafiando o colorido das mariposas.
Eu quero sentir Cassengo e Luachimo
brincando nas praias dos seus encantos
Sentir Luachimo e Cassengo
conversar interiormente
trocando segredos arco-íris
da linguagem das águas.
❧
CARAVANA DE NENÚFARES
A transparência das águas sonolentas
acolhia uma comitiva de répteis
conversando no colo da chuva.
Suas ondulações veneravam uma árvore
com bigodes de lianas
ou talvez colares de missangas
enfeitando o pescoço do rio Dande.
O luar lambia o pulso da vegetação
com telegramas luminosos
quando o jacaré foi pagar imposto
o caudal roubou uma caravana de nenúfares
aportados às margens dos dedos livres do vento
A transparência das águas sonolentas
sacudia as barrigas das canoas
onde o rio fala duas línguas
❧
RÉDEAS DAS ÁGUAS
Nas terras do Dombe Grande
o louco rugido da chuva
esconde nas costas
uma selva de rancores
A meiguice do rio perde a compostura
derramando a paciência do Coporolo
nas terras do Dombe Grande
Furiosas torrentes martirizam uma ponte
angustiada.
Homens perdem as rédeas das águas
com estoques de súplicas
Sobas cortam os cabelos arrepiados das águas
num ritual de oferendas
os manjares se revelam às sereias.
Você busca respostas às divindades
nas terras do Dombe Grande
❧
SINCRÉTICA DOMBE
Meus olhos recolhem
sementes da esperança
sem ensaiarem lamúrias
Plantações definitivamente magoadas
acordam amordaçadas pelas águas
a dor não cruza os braços da baía
farta de vestir lágrimas
Ao luar um Mundombe é sitiado
entre iras ancestrais dos deuses
do Coporolo
e a meditação do terço
❧
NOTA BIOGRÁFICA
Bendinho Freitas Miguel Eduardo nasceu a 25 de Maio de 1971 em Luanda. Jurista, licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto UAN e Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos, pela Católica-Lisbon School of Business and Economics e Universidade Católica de Angola.
You might also like
More from Alfredo J. Ferreiro Salgueiro
Tocar na palavra de forma viva | Sobre «Câmara de ar», de Hirondina Joshua
Câmara de ar (douda correria, 2023) é o último livro de Hirondina Joshua. Da Palavra Comum tivemos a honra de …
Tono Galán expus na Corunha | Alfredo J. Ferreiro
Tono Galán (A Corunha, 1967) é um artista corunhês muito polifacético que, embora se esteja agora a dedicar fundamentalmente à …