É difícil a primeira rejeição, mas depois a gente se acostuma. Não vale nada. Falei essas sinceras e diretas palavras à minha mãe. Ela, com o disfarce de mil caras, logo verteu um absurdo de lágrimas, exatamente como fez anos atrás; para ser preciso, há quinze anos, quando decidiu me relegar aos cuidados de vó Dôra, sua e, desde então, minha verdadeira mãe. A razão do abandono: precisava estar “livre” para se casar com G. S., o nome inúmeras vezes pronunciado por sua benigna boca. Durante dez anos eles tentaram constituir a própria família, a “família dos sonhos”; ela apostava tudo para ter um lindo rebento – esquecendo-se de mim. Não recebeu a graça, talvez por castigo divino. E o cabra, pelas histórias que ouvi, despejava nela a sua frustração. Dizia que ela era a responsável por não “emprenhar”. Que fazia corpo-mole. Que inventara de ter um filho antes e, por isso, “desonerara” as tripas; que não serviriam mais para nada. Ela comeu o pão que o diabo amassou, na mão do sujeito. Pergunte-me se o homem deu ao menos sugestão de fazer um espermograma. Nunca. Seria uma desgraça muito grande saber a verdade. Ele era “goro”, como o povo chama. Não teve filhos nem na encarnação passada. Ficaram os dois em casa, moendo vento, por quinze anos. Agora, ela acabada, viúva de marido vivo, quer o meu perdão; quer que eu volte a morar com ela, ou vice-versa. Desfiz a imprecação. Retruquei que mãe, a minha mãe de fato, carecia dos meus cuidados, dia e noite, pois que já não se conservava nem dez minutos em pé. Além do mais, estava esquecida, não se lembrava que dia era da semana; que deveria comprar e preparar a comida; que perdera o marido no ano de 1978, bem antes de eu nascer. Desencontrada com o destino, a minha genitora, L. M., necessitava de aconchego – contanto que não fosse o meu. Pedi que permanecesse em seu lugar; que não arranjasse de vir morar com a gente, porque não haveria jeito de nos acomodarmos, depois de tantos anos. Não nos reconhecíamos mais. Para mim, uma estranha. Ela, sem forças, me suplicava ajuda, alegando que teria me deixado com a sua mãe porque, assim, sabia que eu seria bem-criado. Isso não afastou a sua culpa. Eu não cogitava nos punir com a nossa convivência armada. Para aplacar os ânimos, comprometi-me, a contragosto, a preparar a sua alimentação, por uns dias, até que se arrumasse por lá. Ainda não compreendia de que maneira poderia fazer isso, se nem a de casa eu conseguia aprontar. Comíamos, muitas vezes, pratos-feitos comprados no boteco da esquina, com a dona D., uma senhorinha atenciosa, amiga de vó, mas que era conhecida pelos truques alinhavados; ou seja, resumindo: comidas com gosto de nada e, quem sabe, feitas com pouca higiene. Conte-se, também, que saio cedo de casa, às 6h20min, para pegar o transporte às 7h e, pela graça de Deus, chegar ao serviço, quando muito, às 8h20min, para levar cinco ou seis advertências por mês, com risco de ser colocado para fora. Mesmo que explicasse ao meu chefe que saía de madrugada, praticamente, ele só queria saber da minha constância, e falava que a minha sorte era a produtividade. Claro, ninguém na fábrica tinha a manha de fazer as marcações e os modelos, cortando as peças, como eu fazia. Um trunfo bem guardado. L.M. passou a me demandar bastante atenção. Teria o risco de se alojar em nossa casa, contando com a fragilidade de mãe Dôra, com o seu coração mais amolecido pela suposta doença degenerativa. Quando eu aportava em casa por volta das sete horas da noite, ocorreu de, em cinco ou seis oportunidades seguidas, L.M. estar me esperando na porta. Eu deveria ser, segundo as suas coordenadas, o seu mais novo confidente, inclusive para as mais profundas intimidades, as quais eu fazia questão de não ouvir; pedia que me poupasse dessa aflição. O que me intrigava era o descaramento ou o fingimento, como se não houvesse acontecido nada entre nós. Aproveitava-se da minha educação, confundindo, decerto, com ingenuidade ou leseira. E eu fazia questão de pontuar que não éramos amigos, muito menos a considerava como mãe. Falava numa disposição tranquila e segura, e ela, em resposta, se lastimava de suas decisões pretéritas, dizendo ser atormentada por não ter paz; que a paz seria a minha bênção. Logo mudava o tom, compreendendo que não chegaria a lugar algum com essas artimanhas. Exigia, aos gritos, ver e conversar com a mãe. Claro, uma estratégia rasteira para se entranhar mais, como um parasita. Percebi que ela estava enlouquecendo, pois proferia as palavras mais baixas, longe de sair da boca de uma mulher sã. Recomendei que fosse à igreja, que orasse, pedindo a Deus a consolação. Ela me atendeu, confiando que, de tal modo, mudaria o fado. Nos dois meses seguintes, batia à porta para orar por mim, sendo uma encarnação divina, uma legítima santa de altar, como fazem certos crentes redimidos – após uma longa ficha pregressa de malfeitos. Ajuizei ser um caminho para a recuperação. Contudo, a mulher se atrapalhava mais, altercava e variava o som da voz quando era contrariada. Pedi que orasse mais – suplicando eu a Deus para ser esquecido. Nada a demovia do papel de carrasca. Despejava na porta de casa objetos e queimava-os, acendendo enormes fogueiras; as ditas fogueiras santas, para “acabar com o mal”. Comecei a ter medo de sua figura arrepiante, catastrófica, e alcancei a razão de tudo. Era vítima do seu desatino. Passei a recebê-la em casa, na varanda, sem lhe permitir o encontro com a mãe – para evitar o desastre maior. Ela alterava o semblante conforme a valsa, cada vez mais traumática nos atos. Houve o dia em que se enganchou nas minhas pernas, chorando copiosa, pedindo perdão. Perdoei-a em palavras soltas, no ato, saindo em direção ao banheiro – antes, fechando a porta de acesso à casa – para ligar a um centro psiquiátrico e pedir a sua internação. Nada fácil; um suplício. Não havia vaga, “no momento”. Decidi que ela deveria ficar em casa e pedi licença médica do trabalho, por estar eu comprometido também dos nervos. Somente por intermédio de meu médico consegui a sua internação. Ocorreu à noite, para não gerar escândalos na rua. Uma cena horrorosa, de cortar o coração: “Não me deixe, meu filho; não me deixe ir! Eu te amo!” Nas primeiras duas semanas, não consegui discernir a dimensão dos acontecimentos, vindos de uma vez, em blocos espessos de dor. Estava a ponto de ter um colapso, quando mãe Dôra ressurgiu, tão plena, conscienciosa; colocando-me em seu abraço, como fazia nos velhos tempos. Animava-se em me ver dócil, entregue aos seus carinhos. Foram os trinta dias em que, finalmente, respirei ares de esperança. Intuí que poderia ser a bendita cura. Conectei-me aos céus, renascido, dispersando nuvens. Mãe me contava sobre os melhores dias; sobre as nossas viagens, as nossas conquistas, que só nós conhecíamos. Agradecíamos a Deus e à Mãe Rainha. Foi a ousadia fundamental que me fez viver conforme as corretas significâncias. Degustávamos as mínimas alegrias. Os beijos corriam naturais como o vento brando. Até que mãe, numa manhã iluminada, sem prevenção, voou feito uma rolinha para o seu merecido lugar de paz.
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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram.com/adrianobespindolasantos/ | facebook.com/adrianobespindolasantos adrianobespindolasantos@gmail.com
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