“Não há poema sem acidente; sem ferida, não há poesia nem arte”
Derrida
A linguagem poética de Teoria das Ruínas, de Alfredo Ferreiro, lembra-me um rio: sempre a arrastar e a apagar tudo e, ao mesmo tempo, sempre pronta a receber todos os destroços, todos os reflexos humanos, sempre pronta a despenhar-se no abismo e a reflectir essa queda. É sem dúvida o que mais me interessa na poesia: obstinação, logo violência, logo absurdo; a procura de um aparato verbal que não se destine à figurabilidade, ao mimetismo do real, à subjugação, às formas de poder que se manifestam sempre de maneira totalizante dentro de um discurso normalizado. Nestes poemas encerra-se uma dolorosa surpresa que inaugura no leitor um espaço de pura metamorfose do tempo; ramificações e vórtices, um caminho na floresta que não foi sujeito ao mapeamento racional, palavras-espanto. Só há um tempo possível dentro do poema e ele é o metamórfico; porque o poeta sabe que só ele se pode opor à passagem da vida e da própria morte, só ele pode ser uma linha de fuga à banalidade das coisas, à avareza de espírito, ao deus da economia que pende sob as nossas cabeças como um machado. Porque o tempo desta poesia ilumina todos os instantes, mas não se fixa neles: queima-os, derrama-se como ácido sobre as imagens que quer construir, e nesse construir destrói, destrói sem cessar.
Chateaubriand, escritor e político, juntamente com os românticos da sua época afirmava que as ruínas serviam de escala para medir o tempo. Através delas regressavam ao passado e viam tudo o que tinham perdido. Hoje, talvez vivemos de novo sob essa sombra da perda, (os centros comerciais, por exemplo, serão as nossas ruínas espirituais de um futuro demasiado presente?) o nosso tempo é o da selfie, do polido, do liso, do tempo sem distância, sem carácter e sem respeito, o que faz com o que o corpo soçobre, entre numa profunda crise de vazio; neste consumo voraz de imagens perdemos a negatividade do diabólico, do sinistro ou do terrível. Para Adorno, a negatividade do terrível é a essência do belo; o belo não é uma imagem, mas um escudo. E talvez por isso, neste Teoria das Ruínas, há uma espécie de sublevação do espírito que se erige sobre o seu próprio tempo, sobre a barbárie; para isso serve-se de uma alternativa rítmica de presença e ausência, de encobrimento e desvelamento, e mantém assim o leitor desperto no olhar.
A sensação com que ficamos é que a poesia resiste à transparência, resiste à interpretação, mas desencadeia o desejo, não é essa uma das funções vitais do poema? Sim, supera-se o desejo identitário como se perde no anonimato, provoca uma demolição do eu, esse eu que é hoje pobre em formas de expressão estáveis, que não possui consistência, que se transformou num narcisismo negativo. É pois nesse lugar longínquo, de nós mesmos, ignoto, onde nos deparamos com o irrepresentável, o impossível de ligar, as irrepetíveis fulgurações, os despojos, os demónios, a palavra-carne, e que, ao mesmo tempo, sobre esses escombros o lamento e a meditação melancólica do que se perdeu, nos deparamos com o tempo do outro, dos Outros, desenteriorizando-nos e fazendo com que renunciemos à nossa posição egoísta no mundo. E o poema ao libertar-se desta necessidade de lógica e das prerrogativas do discurso racional integra o novo, o ambíguo, o anacrónico, o estranho, o que não se constrói com total transparência e cujo sentido pode ser apreendido de imediato. Porque só assim ele poderá ser acontecimento, acontecimento da verdade que define de novo o que é real. Um lugar que gesta, recebe e incarna a vida conferindo ao ente sentido e significado. E enquanto acontecimento da verdade, o belo é generativo, fecundante e ainda, por fim, poetizante. E então surge a imagem inaugural desse rio, o rio deste livro, onde para mim se manifesta na sua perfeição o dom do belo, esse silêncio a partir do qual a natureza fala.
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Texto lido na apresentação de “Teoria das Ruínas” de Alfredo Ferreiro Salgueiro, na Feira do Livro de Braga, 2019. Foto: Tiago Alves Costa por Alfredo J. Ferreiro Salgueiro (Famalicão, 2017).
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