Quem é o terceiro que sempre caminha a teu lado?
Quando conto, só estamos tu e eu
Mas quando olho pela estrada branca acima
Há sempre alguém a caminhar junto de ti
Envolto em manto castanho, e embuçado
Não sei se será homem ou mulher
– Mas quem é esse do outro lado de ti?
T. S. Eliot, A Terra Devastada
Quero, desde já, agradecer. Em primeiro lugar, ao júri e à família da poeta Glória de Sant’Anna, patrona deste prémio, a todas as entidades envolvidas e responsáveis pelo prémio, a Gisela Ramos Rosa (coordenadora da colecção de Poesia Clepsydra) e à minha editora Natacha Serrão, e gostaria de agradecer, também, à minha família e aos meus amigos tão entusiastas, que me seguiram até aqui. Desejo felicitar os meus concorrentes, em particular a poeta Maria Azenha e João Rasteiro, cuja poesia conheço e admiro. Fico ainda feliz por me encontrar aqui com o anterior premiado, Samuel Pimenta, este jovem tão talentoso.
Retorno ao texto que Paul Celan, esse poeta maior da língua alemã e que foi uma vítima trágica, escreveu um dia, precisamente ao receber um prémio na cidade de Bremen, que, na língua alemã, “pensar” (denken) e “agradecer” (danken) eram palavras com a mesma raíz. Seguindo-lhe o raciocínio, irá mais longe dizendo ainda que lembrar (gedenken) e rememorar (que vem da palavra Eingedenken) pertencem todas à mesma constelação que ilumina a nossa noite. E é precisamente do que venho aqui falar, do que significa o poético, a poesia e a escrita, para mim.
Nunca estamos nem estaremos sós. A não ser, talvez, na hora do abandono final. Porém, quando pensamos, quando escrevemos, somos habitados pela presença. Não só a presença física dos que nos acompanham, mas a imponderável presença do invisível: das vozes que ouvimos, dos poetas e escritores que lemos, de tudo aquilo que nos habita e se demora em nós, mesmo que não nos apercebamos. Estar a sós diante da página em branco nunca é uma verdadeira solidão, para combater um certo lugar comum que persiste. É sobretudo um acto de escuta e de abandono, em que procuramos esse rio interior ou a voz que nos persegue, aquela que procura a sua fenda, a fissura, por onde entrar e fazer-se corpo, linguagem, um modo de se dizer e de chegar à fala, atravessando os tempos. Esquecemos hoje, imersos que estamos numa actualidade esquizofrénica, esse imperativo a que chamaria ético: o da rememoração.
Porque se trata de obedecer a uma espécie de apelo, o de trabalhar a linguagem, o de exercer sobre ela esse efeito de lhe impor um molde e de lhe dar uma forma, é a escrita uma das mais exigentes tarefas que o homem pode tomar para si, evitando-lhe as armadilhas do cliché, da sedução gratuita, na qual a poesia cai com demasiada facilidade, cedendo aos jogos fáceis de musicalidade. Não que ela não seja musical, o que seria renegar-lhe a origem, lembremo-nos de Homero e dos bardos, mas essa musicalidade é-lhe inerente, íntima, quase diria sagrada, uma respiração. Mas, tal como numa obra de arte, o ornamento excessivo não faz senão degradar a poesia, desviando-nos da sua força e da sua «verdade», desse trabalho de «mãos verdadeiras», de que fala Celan, quando diz que «só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros».
E eu acredito na poesia e no seu poder verdadeiramente único e também creio que tudo o que vemos é poesia, que o mais pequeno animal, a mais pequena flor ou corpúsculo representam um pensamento e a pura intuição do instante. Diria mesmo que a poesia faz revelar essa verdade de que nos fala Celan. Podemos ir buscar o sentido poético à magia da linguagem, nesse sentido de que Pier Paolo Pasolini falava, que nos permite agir sobre o mundo mediante uma deslocação de sentido ou de ponto de vista, por vezes mínima. Cabe-lhe a ela, portanto, estabelecer esse desvio ou essa nova construção da realidade que assenta na desconstrução dos códigos de comunicação existentes e que permitem abrir fissuras, rasgar aberturas no espaço, a partir dessa alteração. Mais do que linguagem, a poesia é antes um «outro olhar», religando o que se encontra separado, reencontrando esse sentido que não havia. Uma convocação do sagrado ou disso para o qual não há nome, mas que nos permite nomear, reconhecer cada gesto, cada planta, cada animal. Algo que não está para além, mas que existe no íntimo de cada coisa e que a Linguagem faz despertar. Neste sentido, então, um outro modo de olhar o ínfimo e devolver-lhe o fulgor ou o sopro.
Aproveitando a minha presença pública aqui, friso esse sentido de verdade que a poesia tem, partilhando eu aqui a posição do meu querido amigo Samuel Pimenta. Verdade, também, enquanto responsabilidade ética, tomando (e reclamando) isso como tarefa, seja ela a de rememoração, a que naturalmente sempre levaremos a cabo pelas presenças que nos habitam, seja a de denúncia, de advertência. E uma parte do meu livro é, precisamente, dedicada ao que temos de lembrar e de denunciar, ou não fora a escrita uma forma de combater a barbárie.
Vivemos hoje estranhos tempos, neste mundo de banalização de imagens e de violência, tempos atravessados de sombrios espectros, que não terão nenhum espelho para rever-se se a tal não os obrigarmos. Que não serão visíveis nem perceptíveis, se aqueles que os olham não os denunciarem. Vivemos hoje estranhos tempos, em que as ideologias estão moribundas e os valores humanos estão reféns de uma ditadura dos mercados, de uma lei que ignora o indivíduo e a sua liberdade. Olhando à nossa volta o que vemos? O retrocesso das conquistas da liberdade, o crescimento do terror e do medo. Vivemos acanhados nesse vago medo do que virá. Assombrados por um futuro que se desenha mais apocalíptico que luminoso. E este é o mundo que deixaremos aos nossos filhos e aos que nos sucederão, se nada fizermos para o impedir. Como o fizeram os nossos antepassados, abrindo-nos o caminho, lutando pelos nossos direitos individuais, escavando, passo a passo, a largura do nosso espaço público e democrático. Imagino que todas as épocas sejam de luta, de uma forma ou de outra. Porém, o caminho vai-se alargando, à medida que os aventureiros o trilham, para tornar mais fácil a passagem aos que virão. Não é isso, todavia, que observamos agora, como se as ervas daninhas que pareciam ter sido queimadas e destruídas tivessem voltado. Por isso é preciso voltar a abrir o caminho e lutar contra o que nos destrói, enquanto humanos. Voltar a conquistar a liberdade que ameaça perder-se, e falo aqui de coisas concretas como a defesa da democracia, num mundo em que cada vez mais a vemos ameaçada. Acreditámos que era possível construir uma comunidade mais justa e equitativa, destruindo os muros que nos separavam uns dos outros, acreditámos (e continuaremos a acreditar) que o amor é mais forte que o ódio, que o diálogo exprime a superioridade civilizacional e que tínhamos aprendido com as devastadoras guerras do século XX.
Neste mundo, pergunto-me e pergunto-vos, quem acredita ainda no poder redentor da palavra, da poesia, da arte? Estarão os poetas, os escritores e os artistas em risco de extinção, como as espécies animais? Não deveriam então ser preservados como o que de mais precioso possui a humanidade? Pois só eles têm ainda essa possibilidade de salvar uma tradição que ameaça soçobrar no esquecimento dos dias que correm, imersos na procura desesperada da técnica, na pulsão consumista e desenfreada, numa sociedade tornada zombie pela passagem alucinada e voraz do tempo vazio. Por isso, olhar de novo o ínfimo ou, o que é o mesmo, devolver-lhe o olhar, escutar o poder da palavra como a possibilidade da nossa redenção, eis o que a poesia nos traz, que devemos agradecer infinitamente: esse mistério sagrado que nos toca. E basta que uma única pessoa seja tocada, que ela se emocione, que o poder da poesia desça sobre ela, apenas isso valerá a pena, pois é a linguagem que se salva, como a buganvília que liberta, no momento exacto em que fenece, o odor inigualável que permanecerá na nossa memória. Para sempre.
* O verso inicial é de Glória de Sant’Anna, Gritoacanto
Maria João Cantinho
NOTA: desde a Palavra Comum agradecemos à autora e ao Samuel Pimenta o terem contado com este espaço para publicar este texto.
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