PRIMEIRA LUZ
Ao primeiro brilho, a verde cor dos sonhos evola-se. Um deus já esquecido apronta-se a caminhar sobre a terra.
A cotovia dá o sinal. Uma leve brisa veste-se de branco para o receber; as fontes clareiam a canção – o seu rumor antecipa a frescura que descerá pelo dorso quente duma tarde de melros e figos maduros.
É hora. A luz toca com sereno encanto as safiras celestes, devorando o manto da fria sombra; as aves recordam o íntimo voo a cumprir, os malmequeres despertam com o brilho das lágrimas pela lua vertidas.
O mundo renasce, como que saído do silêncio do primeiro crepúsculo. Novas flores irromperão de carícias por nascer, novos frutos serão mordidos em cada beijo de lenta desfolha.
Abre as mãos num gesto de dádiva. Ao sol nascente deixa o pássaro silente do teu peito cantar.
*
SOBRE AS AREIAS
Um mar de nada, luzindo turquesa em eterna canção. Duas sombras, tão gémeas do céu ou do vento, sobre o espelho fulgente de areias em decrescente ebulição trilham um caminho sem fim. Vestígio após vestígio, garça alguma neles lerá a denúncia do rumo traçado no sal do instante.
Um perfume de nardo imiscuído em sândalo e canela de cetim, um polvilho salgado sobre a maior frescura do sopro poente. Os olhos anseiam evaporar-se num incêndio de luz, mas querer é demasiado quando tudo é o perfeito acorde do vazio. Por isso cintila, tão magnífica e pura, a solidão do voo duma gaivota, a rocha aberta ao eterno movimento da onda que aceita a sua morte.
O teu toque, explosão solar de giesta fora de estação, lembra no seu súbito arrepio a carne doída do desejo voraz.
*
AINDA AS ROSAS
Escuta:
o toque do vento
por entre a iminente
nudez das figueiras.
Repara:
no abandono dos corpos
o irromper
duma rosa branca.
*
ELEGIA AO POENTE
Tão ténue a luz
deste macerado sol
que em nossos olhos
poisa, canta e morre…
Entreguemos os corpos
à sombra que o envolve.
E talvez sejamos os rios
que a lua prometeu chorar.
*
O MISTÉRIO DAS ÁGUAS
Serão os corpos água?
Só de teus olhos sei:
para levar à boca,
quando a sede
sufoca.
*
PIQUENIQUE
Sobre o meu ventre:
a branca flor das tuas mãos.
(A luz escorre pelos flancos
da tarde gritando oiro.)
O corpo inunda-se
de cada vogar lento
desse outro que é fruto
sem à terra o pedir.
(Tão clara a maciez dos seios,
tão iminente o íntimo perfume.)
Prova destes espelhos o mel
da gloriosa morte dos poentes,
e desta porta ao estio aberta
saboreia a frescura imensa
da palavra rarefeita.
Nenhum outro trevo saciará
o lume das rosas quietas.
*
Notas: Os dois últimos textos (“O Mistério das Águas” e “Piquenique”) foram publicados no livro editado em outubro de 2018, de seu nome Lydia. Fotografia de Alfredo J. Ferreiro: “Rio Alva, 2019”.
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