Hirondina Joshua por Carlos Manhique
Câmara de ar (douda correria, 2023) é o novo livro de poesia da autora moçambicana Hirondina Joshua. Da Palavra Comum tivemos a honra de falar com ela sobre esta obra e sobre e a sua conceção da poesia. Estas as palavras com que nos regalou, na mais generosa profundidade.
Aliás, oferecemos em áudio dois trechos lidos por Alfredo Ferreiro, num arrebato de atrevimento à que a leitura da boa poesia com frequência o transporta.
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Alfredo Ferreiro: Câmara de ar tem uma linda capa, e a seguir oferece um conteúdo de muita intensidade.
Hirondina Joshua: Obrigada.
Apesar de remeter para o gasoso no título, é um livro de sólido conteúdo. Mas também é plural, composto por quatro cadernos com um grande poema dentro de cada um.
Os cadernos mostraram-se a minha natureza como se os meus dedos estivessem conectados por um fio mergulhado directamente aos poemas. Os poemas, fissuras implacáveis que derrotam o instante.
A pontuação e até o uso do asterisco separam mas não afastam os poemas uns dos outros. O fluxo poético semelha uma corrente de água subterrânea.
Eu queria escrever um poema longo, tão longo quanto o tempo.
Os ciclos, no quadro dos elementos naturais… Eu descubro no livro não só o efeito do tempo mas como que um “tratado” sobre os processos alquímicos da percepção, ou mesmo sobre a metafísica do facto poético. Por exemplo, quando dizes: «Queria contar a estória sobre como o corpo se fundiu em todas as terras e fez a palavra voar».
Câmara de ar podia ser um sistema que partiu da garganta com uma estória infindável sobre algumas vozes.
Desejas contar como surgiu o título?
Pessoas ao longe a discutir sobre quem havia de emprestar o carro, ouvi: “Câmara de ar”; soou mais alto a roda da vida projectada para onde eu estava.
Tem a ver com a roda do carro, com o interior dos pneus?
Deixou de ser o objecto pneu.
Vi um objecto poético no som.
Na imagem (refiro-me à alucinação que ela transporta) que parece um sistema enraizado e na sílaba tónica e o facto de todos os poemas serem redondos como o abstracto do símbolo exterior que carregam.
Penso que a aparição tem a ver com aquilo que somos no momento. Preocupa-me o ritmo e como a palavra deixa a sua energia.
Mais do que uma aparição parece uma revelação…
…Um instante que invade dentro doutro instante que percebo sem perceber.
Eu alinho com isso: a palavra é vibração, tanto pela imagem quanto pelo som.
Há combinações que deixam o sentido fraco, por causa da tónica.
Podes dar-nos um exemplo?
Córtex, ele inicia forte, bate no “cór”. Câmara também bate, no “câ”. Para os outros pode não fazer sentido, mas para mim importa.
E Córtex tem um teor culto, cortante, visceral, cirúrgico…
Com frequência usamos as palavras sem ter em conta os matizes, que são substanciais em poesia. “Rubro” tem uma energia diferente de “vermelho” ou “escarlate”, mas é a mesma coisa.
Rubro é férrico, dir-se-ia.
Porque no mundo há um conjunto de sinónimos, mas um só pode dizer.
Trata-se de encontrar essa palavra, a palavra certa.
Há aquelas palavras que sabemos o que significam mas no fundo não sabemos o que querem dizer.
Quando escrevo páro e volto a ver, por exemplo, o sentido da palavra “emergir”, ou “movimentar”, “comer”… E quando volto o sentido fica mais denso, e a palavra aparece no texto de forma transfigurada. Penso que foi assim que comecei a usar imagens nos textos.
“Tu usas muitas imagens. Isso é mau, tens de melhorar”. – Disse um senhor depois de ter lido os meus poemas na adolescência. A verdade é que nunca consegui melhorar, piorei. Depois de anos o mesmo veio dizer que gosta do que escrevo. Se cortasse esse “exagero” não teria no que me sustentar. Não sei escrever sem imagens.
Há gente que recomenda receitas um tanto pobres…
E há mecanismos que resultam para cada pessoa. Admiro um pintor que usa muito o azul; ele é azul e o azul é ele.
Aliás, a realidade poetizada aparece em transformação permanente durante todo o livro.
Tudo parece mudar. Mas creio que a essência não muda, ela só é maior que eu. Por isso não a vejo.
No livro falas em elementos básicos: água, ar, sangue, fogo, ouro, oco… E outros muito simbólicos: ovo, vulva, ferida…
Prefiro trabalhar com o símbolo, ele representa rapidamente a visão. Posso tocar na palavra de forma viva. Gosto do coração da palavra.
Também incluis uma reflexão sobre a função do poeta, aquele que “deve ser expulso” e desaparecer “dentro do milagre”. Estás a falar da inspiração?
Inspiração é entrar na vida e continuar a viver. Um processo que se faz por si próprio.
Pode ser algo físico que transcende ao esperar. Os mecanismos físicos por vezes se confundem com os da psique.
As coisas acontecem enquanto escrevo, sendo que antes existiam fora da mão num outro jeito de estar. As coisas de dentro são as coisas de fora e vice-versa.
O facto de as coisas existirem “fora da mão num outro jeito de estar” lembra-me o conceito de inspiração na Poética de Aristóteles, em que o inspirado é o medium graças a quem a divindade deita as suas essências na terra. Tu também não hesitas em nomear Deus, facto incomum na poesia actual.
Uma nova obra que estou a escrever começa assim: “Deus entra na minha mão e me faz ver o pai. Ele entra na memória clandestina e me faz dançar na chuva. Canto e depois adormeço”. Então agora digo: “Deus entra na minha mão e me faz ver a luz”.
A reflexão sobre o poético, se não chega a vertebrar o livro, no mínimo é uma companhia permanente. Na linha do que vens de dizer, percebo o espiritual como apoio fulcral da poeta…
Ou a Hirondina e depois a poeta…
Claro, a pessoa implica mais do que o seu rol de poeta…
Quem é a poeta antes de mim!?
Calculo que nem há antes nem depois, são realidades simultâneas, ou vários aspetos na mesma pessoa.
Quando era criança não escrevia poemas, mas já era Hirondina.
No entanto, podias ter uma visão poética da vida, diferente de outras crianças…
Isso nunca saberei.
Tens razão, seria uma linda ficção escrever nisso, mas uma criação da Hirondina poeta actual… Até porque “não é possível escrever sobre o índico sendo do índico”, como dizes no livro.
Quando se é: parece que algo apaga para que não se descreva a comunhão; o acto consumado.
Como escreveu Fernando Pessoa: “quem sente muito, cala”.
Também destila o livro uma vontade de comunhão com a Natureza: “É-me difícil ser irmã das formigas”; e até com o telúrico: “Queria ser pedra no seu estado mais puro”. É uma vontade de te comunicares com “o essencial”?
É a linguagem das crianças, elas partem do coração para o chão. A minha adulta teria um sujeito poético? Por que escrever faz voltar a esses terrenos do chão? É por causa do tempo que está para atrás do que para frente? E porque ele corre rápido? Penso muito sobre isso.
Remetes para a linguagem das crianças pelo seu modo direto de sentir e falar? Porque concordam com a linguagem essencial que procura o poeta?
A linguagem das crianças porque elas são imediatas e contrárias ao imediatismo. O que adultos dizem ser “pureza”.
Os adultos por vezes falam em “inocência” infantil, e por isso eu suspeito que com frequência pensam em termos de culpabilidade. Porém, as crianças não fazem.
As crianças têm maldade, se não a tivessem não seriam puras. A diferença é que elas escolhem o outro lado.
Elas são mais conscientes da importância de escolher o bem?
São mais claras.
Outro dia eu encontrei uma criança de cinco anos e um senhor perguntou-a:
–Quem é a tua mãe?
E o menino respondeu:
–Aquela ali.
–E como sabes que é a tua mãe?
– É minha mãe porque é.
O senhor insistiu.
– É porque é. (Aos gritos).
Gostava de retornar ao fio do estilo, que tanto me maravilha. O livro todo demonstra uma grande liberdade formal: a sintaxe, o corte dos versos, o imaginário…
A liberdade formal é um acidente dentro daquilo que é minha tentativa de expressar porque não há literaturas perfeitas. Exercito-me para aproximar ao “original” uma força que se desconhece a si própria. Aquilo a que denominam língua. A verdade.
Alguém me perguntaria o que é a verdade? Por exemplo: O sangue que corre nas minhas veias, a substância genética impregnada é a mesma que a dos meus pais, a isto chamo verdade.
Aquilo que está dentro do tempo em que estou e, já esteve noutro tempo e estará à frente deste em que me encontro.
Mas o poeta não é aquele capaz de criar o que não existe, e sentir o que não foi sentido?
Ainda não li algo nunca antes visto. Tudo é variação do grande poema que é a vida.
O homem continua o mesmo, séculos e séculos a construir coisas, a ter vontade de mandar sobre o outro, a amar e a sentir a morte.
A função do texto, a função do poema é que deve ser o mistério, talvez um dos grandes mistérios a par da vida.
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Hirondina Joshua, escritora e jurista moçambicana, nasceu em Maputo a 31 de Maio de 1987. Membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Participou no Festival Internacional do Livro de Edimburgo, a maior celebração pública da palavra escrita no mundo em 2023. Tem representado o país nos principais festivais do mundo para além da sua colaboração em revistas e antologias.
Obras publicadas
Poesia: Os Ângulos da Casa (2016); A Estranheza Fora da Página (com Ana Mafalda Leite, 2021); Córtex (2021); Câmara de Ar (2023). Prosa: Como Um Levita À Sombra dos Altares (2021).
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