Quando gosto de um livro digo-o a toda a gente. Quero partilhar o privilégio do contacto com boa literatura. Quando não gosto de um livro, não digo a ninguém. Pode ter sido um problema meu.
Não é o caso de “Tornado” de Teresa Noronha. Há muito tempo que não me apaixonava por um livro escrito em português. Vencedor do Prémio Literário Maria Velho da Costa e incluído no Plano Nacional de Leitura, é com uma enorme alegria que digo: leiam-no!
Em 1983 as acácias da cidade de Maputo esqueceram-se de florir. Terá sido verdade? Como é que a natureza se esquece assim de algo tão importante e para o qual pensamos que está programada? A narradora faz uma corelação entre este evento e outro, mais pessoal, mas que a própria admite não tão inesperado: o suicídio do irmão. Talvez a natureza seja sabedora do que nos deixa tristes e com isso ponha-se também de luto, pelo irmão da narradora e pelos mortos da guerra civil que se desenrolava em Moçambique.
Tornado é uma longa carta a este irmão. É o resgatar da intimidade perdida e é, num plano narrativo, a construção de um texto que serve para questionar como podemos definir a identidade de uma pessoa e de um país.
O centro deste Tornado não é tão sossegado como se pensa, à luz de alguns testemunhos, que é o centro de um tornado. Estamos em Lourenço Marques, Moçambique, onde a narradora nasceu da mistura de portugueses e goeses.
“A nossa cor nunca foi a dominante. No tempo colonial não éramos brancos, éramos arraçados de monhés, canecos de cú lavado, o termo pejorativo para falar de um filho de goês e portuguesa. No período pós-colonial, eu não era negra e se, em Lisboa, me tomavam por brasileira ou por cabo-verdiana, já em França perdiam-se em cogitações sobre de onde seria e espantavam-se quando descobriam que era africana.”
Situações como esta levam a narradora a sentir “o medo associado à cor de pele, o medo de existir”.
“Mulungo sou eu, aquela branca meia parda (…) naquele tempo, ser mulungo significava para mim não pertencer e ser reconhecida por essa não pertença. E aquilo que eu mais queria era tornar-me invisível, percebes? (…) sair não só dali, mas de todo o lugar onde a minha cor existisse. Consegui? Acho que não. Esse lugar, sei agora, não existe a não ser dentro de nós.”
A identidade estende-se como uma manta de retalhos e é preciso compô-los num padrão original não imposto, mas o resultado de uma construção natural. A narradora é capaz de tecer os seus receios, tão pessoais, ao mesmo tempo que consegue escalá-los para um plano mais geral, o da construção de um novo país, Moçambique.
“E naquela noite de 25 de Junho do ano de 1975 voltámos a nascer. Com outra identidade, noutra condição. Na noite em que morreu o país onde nascemos e do seu corpo morto brotou um outro, dançámos desajeitados ritmos que não nasciam dos nossos pés, mas que celebravam um país que inventaram para nós. (…) Era urgente estar feliz. (…) Um país nascia, o meu. Mas eu também tinha sido ocupante, ou não? Talvez os meus pais o tenham sido, alguma coisa não era tão simples assim.”
Apesar do tema da construção da identidade num espaço de relações de poder estabelecidas entre povos colonos e colonizados ser tão propício a ensaios filosóficos (e actual), leiam “Tornado” com carinho. Não estamos no plano das definições, mas antes, da experiência vivida, daquela que depois alimenta os teóricos. Leiam tornado como leram (ou um dia lerão) Françoise Sagan ou Albertine Sarrazin. Tal como na obra (e vida) destas autoras, também a narradora de “Tornado” balança-se num trapézio sem rede. Não se tem nada a perder quando parece que o mundo não nos quer, quando não nos sentimos desejados. Não nos importamos connosco, quando os outros também não se importam. É esta a condição da narradora que, ao contrário do irmão, não procura a morte, mas aprecia desafiar a vida.
Aos 16 anos envolve-se com um homem de 35, casado, seu professor. As relações na vida desta mulher são evidências na sua busca pelo lugar certo, por aquele instante seguro, perfeito que depois possa ampliar por actos de magia, a todos os momentos da vida, passados, presentes e futuros. Estas relações ajudam-na a abandonar o padrão antigo, de criança e a ultrapassar uma espécie de segundo desconforto: ser mulher.
A narradora entrega-se num tom confessional. Viver dói. E as dores, se partilhadas, podem ser atenuadas. A carta é assim um pretexto para restabelecer um diálogo há muito perdido com o irmão. Perdido ainda antes do suicídio deste por causa de um incidente que violou a privacidade da narradora. A carta é a tentativa de resgate de uma relação que foi interrompida, é uma conversa onde são recordados momentos vividos em conjunto, onde se esclarecem mal entendidos, onde se aprofundam sentimentos e experiências. Ainda que nunca mais volte a ser como era, esse resgate é fundamental para diminuir o sentimento de culpa que a narradora sente. Nas suas palavras, “em nome do que se perdeu entre nós, em nome do que é humano, da podridão e da extensão do mar, das sombras e das luzes, ouve-me. E, se puderes, se algo te for ainda possível, absolve-me”.
A absolvição é um processo em construção. Assim como uma mulher que se vai construindo. Assim como um país. Nada neste romance é simples, e ainda bem. A leitura é deliciosa, com uma teia narrativa não linear, interlaçada, mas muito bem construída e que convida a várias leituras.
Foto de Fausta Cardoso Pereira por Ozias Filho.
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