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sedimento
buscar na minha cidade já desabitada em que
cemitério enterrei minha força: buscar com um
detector de metais à mão a apitar em negativo
perdi as contas de quantas camadas verteram
acima da biologia original antes de sumirem os
jogos de amarelinha pintados de azul e branco
no meio da rua os pares de tênis atirados pelos
fios telefônicos e as aroeiras sobre as calçadas
que há muito nem dão sombra nem levam com
mijo dos cães minha cidade já inodora insípida
não faz mais queijos que se comam com rosca
minha cidade tão inaudível afônica irressonante
espanto é haver vento ainda suspendendo o pó
minha cidade sem velhos que nos furem a bola
sem os meninos que com o esforço mais risível
encontrem força meio a espólios ou escombros
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armadura
quando menina apertava os dedinhos na barra da saia
de algodão num canto via as colegas bonitas correndo
seus corpos de dente de leão suas levezas sem esforço
pelo pátio elas sabiam subir em árvores e pular muros
e sabiam dizer as palavras exatas para me derrubarem
de lá de cima as palavras pulavam sobre meus ombros
quando mulher aperto meus dedos embaixo do casaco
e crio forças para enfrentar a beleza hoje saio do canto
com os ombros tensos para não cair e crio meus pátios
acima das árvores e fora dos muros também sou leveza
recolhi do chão os ninhos caídos as sementes expostas
e dentro de mim habita uma ave há vinte e poucos anos
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outro canto
para maria valéria rezende
se houver qualquer coisa após a morte
queria que se passasse em olho d’água
em um lugar meio alentejo meio sertão
meio andaluzia, sagrado, em bege-trigo
cada um em sua janelinha, conversando
e revezando histórias, o que fez e o que
não fez ou quem deixou o quê para trás.
ver quem venha pelo horizonte, saudar
com um convite ao choro e dois ao riso.
presos nas faces, nas idades já imóveis,
na última roupa, no último gato, todos
plantando mandioca e feijão-de-corda,
nós em casinhas amparadas em círculo
no centro uma fogueira, instrumentos
para trabalhos manuais ao redor, todos
tingindo teares para costurarmos o céu
lentamente: em azul, laranja e amarelo
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Amanda Vital é assistente editorial da editora Patuá e co-editora da revista Mallarmargens. Tem bacharelado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e é mestra em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa, trabalhando com a obra poética de Augusto dos Anjos pela editora Ponto de Fuga, de Lisboa. Autora do livro Passagem (poemas, Patuá, 2018). Participa de antologias de literatura brasileira contemporânea e tem poemas traduzidos para inglês, espanhol e catalão, publicados em revistas digitais e impressas.
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