Caolhos Cosmopolináufragos
La dentro, estalo. Me abalo. Bebo o pensamento no gargalo.
Quem sou eu? Quem é você? Porque a gente tem que responder?
Rachaduras não se fixam mais
Estão ali para sempre marcando o uso, o desuso
e o desgaste do que é seu, meu, nosso.
Coisas, não são gente.
Coisa óbvia falar disso.
Mas como retratar arranhados invisíveis,
daqueles que soam no ouvido por um longo tempo?
Ou um olhar torto, de um peixe morto
Que se debate caolho? Visão turva de um engodo.
Seria inocência pensar retocar tudo, tal qual maquiagem,
de que tudo está puro e cheirando a novo
como que recém saído da embalagem?
Coisas também carregam memórias preciosas
Deixa estar o que não temos medida ou ciência
A vida acontece quando você menos espera,
E não entra pela porta da frente e nem pela janela,
ela te surpreende.
As coisas estão só de passagem.
A gente também. Trocamos de pele
de casas, de vozes, de amores, de cabelos
Sentimos dores, crescemos pelos.
La dentro estalo. Me abalo.
Sinto um soco oco. Desamparo.
Já não sei quem sou eu
ou quem é você. Acho que morrerei sem saber.
Não sou cego,
Sou caolho
Meu olhar reto
Ficou torto
Quase morto neste mar
de náufragos
de abalos sísmicos
e tsunamis diários nas vidas do planeta
nossas certezas são pernetas
soldados do exército de Brancaleone
Sou um cidadão comum
Uma cidadã comum
Uma pessoa qualquer, maldita ou bendita
Um olhar caolho sofrego flutuante
Neste tratado da cegueira induzida reinante
Que distancia e ofusca meu olhar
Nessa vida cosmopolita,
Deveras suja, deveras polida,
Organizada e bandida
Não consigo mais focar penetrante
Sou um avatar que passa na praça
E muda as vestes dependendo da avenida
Surfo rasteiro no asfalto ou navego alto
Como um náufrago nessa nau do cosmos,
Um caolho peixe no salitre do mar morto
Me oxido, exorcizo e me salvo,
Minha plateia é muda, não tenho palco e nem me exalto.
Sou Cosmopolináufrago.
❧
Mariana na Lama,
Brumas Lamaçais de Brumadinho,
Lamas Gerais.
A Vale não vale nada, no vale.
Arrasta em lama nefasta
Vidas encobre, tudo arrasta
Lama sobra, nada salva e tudo mata.
Rios envenenados
Leitos rasgados
águas manchadas
vidas dos peixes sangradas
Irresponsabilidade civil deflagrada
Mariana na Lama,
Brumas Lamaçais de Brumadinho,
Lamas Gerais.
Lama jorrada
Barreira arrebentada
Sujeira nos muros
Ecos nos urros
Soterradas pessoas
Soam sofridas e varridas
Por imundas lamas
Animais gritam, vidas morrem,
Berros de desamparo e sangue.
Lamas Gerais,
Minas marcada.
Cadáveres inocentes,
Lágrimas ácidas.
Mariana na Lama,
Brumas Lamaçais de Brumadinho,
Lamas Gerais.
❧
SYRIA CHORA
Ruinas em segundos
Pós instantâneos
De vidas ali construídas,
Recém-destruídas.
MANCHETES NO MUNDO
Inocentes massacrados
Guerras, bombas, armas
Por todos os lados
IMPERIO DO NÃO SENTIDO
Desprotegidos. Desvalidos,
Decadentes fugitivos
Milhares de sem dentes
Crânios pisoteados
País dividido
Regimes autoritários
Abaixo todos os salários
MASSACRE DO POVO OPRIMIDO
Crianças abandonadas
Homens mutilados
Mulheres estupradas
Nos acampamentos, ou estradas
REFUGIADOS ABANDONADOS
Fome.
Frio. Desolação.
Coração vazio.
Refugiados por todos os lados.
Destruição e dor.
Transversal miséria.
Corpos empilhados.
Onde foi parar o amor?
❧
Paula Valéria Andrade é poeta, escritora, professora, designer e artista audiovisual. Nasceu no Rio de Janeiro, vive em São Paulo. Publicou poesia, arte-educação, didáticos e literatura infantil. Recentes de poesia: A Pandemia da Invisibilidade do Ser, 2019; O Novo no Ovo, poesia transmídia, 2021; Seios da Face, 2022; COSMOPOLINÁUFRAGOS, 2022; poesia transmídia e o livro infantil Fuzuê no Manguezal, 2022. Prêmios literários na Itália, Portugal, EUA, Alemanha, e brasileiros: Jabuti, UBE, ProAC Poesia SP, Premio Guarulhos de Literatura e APCA. Recebeu o Prêmio Histórico de Realização Em Literatura ProAC LAB SP, 2022. Criadora e organizadora desde 2017, do coletivo Feminino Infinito e do livro 120 Poetas, Escritoras e Artistas Brasileiras, 2023.
- Cf. Videobook
- Cf. Audiolivro
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