Zacarias morria de sono. Três despertadores iam tocando em simultâneo há vinte minutos e o definitivo – incessante até à marretada final – andava há dez minutos a apitar. Em última instância, recurso derradeiro, havia ainda o despertador da aparelhagem mais para daí a meia hora – esse subiria o tom, em crescendo, obrigando Zacarias a fugir da cama, não estivesse ele morto. À cautela, estaria reservado para as nove, tempo em que já não havia espaço para a esperança.
Zacarias luta muito consigo próprio, daí ser um especialista em despertadores. Os dias puxam demasiado por ele. Tanto cansaço petrifica. Fazer o quê? Beber de penalti uma caneca cheia de café frio sobre a mesinha de cabeceira. Acender o primeiro SG Gigante do dia. É como fazer uma ligação directa para ao menos ligar o motor: ponto onde Zacarias já sabe onde está. E passa a haver tempo. Primeiro para ligar o televisor – noticiário alto, bem alto. Depois, aumentar o volume da aparelhagem ao máximo para poder ouvir no duche. Um dolby surround de campeão permite tais veleidades – o prédio inteiro a ouvir, e a rua, gente irritada, Zacarias quer lá saber… Tem as costas largas. Polícia-ladrão ou ladrão-polícia, tanto faz, depende só da perspectiva, do ângulo por onde se olha o personagem. Fura-vidas como quem fura as ondas do mar; bandido infiltrado ou polícia mafioso, é pelo ponto de onde se lhe põe a vista. É a tal coisa, o olhar. Vê-se pela hora do dia. Àquela hora da manhã não vale a pena, Zacarias ainda é coisa nenhuma. Está ali na fronteira, terra dele e de ninguém, mais especificamente na banheira, debaixo de um esplêndido chuveiro, do mais caro, fez questão.
Após o duche, Zacarias bem sorriria a fazer-se ao espelho. Depois, já vestido à maneira, era só aparar um pouco a barba rala e pôr o habitual pullover sem mangas, daqueles aos losangos. Os losangos são a imagem de marca. Usa-os sempre. No Verão em t-shirts. No Inverno, em camisolas de lã – com manga ou sem manga. Zacarias sem os losangos não se identifica, não se sente nem é filho de boa gente. Dito isto, depois é só variar as cores.
Nesse dia era o verde, castanho e branco; mas podia ter sido azul, vermelho e amarelo; ou amarelo, laranja e preto; ou cinzento, preto e castanho; ou rosa, roxo e cor de laranja. Dezenas e dezenas de combinações em gavetas da cómoda ou no guarda-fatos.
Entretanto toca o telefone. É preciso desligar a aparelhagem e a televisão. Fica o silêncio. A voz de Zacarias a responder: «Espera aí que eu ligo de uma cabine.»
Já na cabine, ali ao Dafundo, Zacarias continua a conversa:
«Vou levar o carro à oficina, depois vou tratar de uns assuntos. Mais à hora de almoço falamos. Tenho umas coisas para te contar. Não… Não… Agora não… Não posso…. Está bem. Ok!»
Linguagem cifrada, mera disciplina telefónica. A oficina não era sequer oficina, era tão só e apenas um armazém onde se amontoavam peças de automóveis roubados, mas não só, havia de tudo, de jóias a relógios, de telemóveis última gama a televisores e aparelhagens de alta-fidelidade como os que Zacarias tinha lá em sua casa. Adiante.
É preciso ir à Gomes Freire. Na Polícia Judiciária uma equipa monitoriza o trabalho com um gangue mafioso da margem sul, com base operacional ali bem escondida em Sarcelas. Ingredientes: extorsão, agiotagem, roubo, droga, prostituição. Zacarias levou fotos e gravações. O fraco Inspector Bettencourt não se poupava em elogios:
«Tu, hoje, sim senhor.»
«Eu bem lhe disse.»
«Maravilha, maravilha, maravilha…»
Ia passando as fotos uma a uma, até ao fim, e vice-versa, repetidamente, duas vezes o fez. Nem sabia bem como agradecer.
«Ai hoje vens almoçar comigo.»
«Não posso.»
«Deixa-te disso. Ninguém te vê.»
«Não posso.»
«Mas, se eu pago.»
«Não posso.»
«Não podes, porquê?»
«Tenho encontro marcado com o Chino. Vêm aí almoçar uns russos.»
Bettencourt disse mais nada. Deu a Zacarias um envelope. Dez mil euros em notas de quinhentos. Oito anos a ser enganado é o preço a pagar pela presunção de achar Zacarias um pobre diabo que não tem onde cair morto. Este finge sempre um fino ressentimento, sabe fazê-lo tão bem, que até consegue ver no fraco inspector aquele típico júbilo íntimo, marca do partidário do pequeno poder. Ele que se achasse, pois. Era a maneira que só dava tudo o que sabia a modos muito bem espaçados, assim como assim a finíssimas gotas de laboratório, para encher o copo em dez anos, ultrapassar o prazo de validade, deixar que prescreva.
Chegado a Sarcelas, pois, Zacarias entrega um outro envelope, desta vez ao intimidante, marcado e torcido Xico Chino, são três mil e quinhentos euros. Algum restante tem escondido no porta-bagagem, cortado para a entrega da semana seguinte.
«Este já é o da próxima semana.», disse Zacarias
«Queres dizer que para a próxima semana ainda me vais dar mais, é isso?», inquiriu Chino.
«Se as coisas correrem como eu acho que irão correr…»
«O quê?»
«Umas peças que aí vêm. Jipes, Audis, BMW’s. Maravilhas da mais pura joalharia.»
«Ai sim?»
«Sim. Tenho dois manos às voltas.»
«Quem?»
«Malta lá de Odemira. Não conheces.»
O almoço é no Café-Restaurante de Chino, um canto recôndito e escondido nos subúrbios dos subúrbios. Café-Restaurante não será o termo mais exacto. Aquilo é mais um clube exclusivo, sem o glamour de um clube, e sem a elegância de um exclusivo. Um pouco como os norte-americanos social clubs da máfia. Ali não entra quem quer, talvez nem mesmo conhecendo Fulano, Sicrano ou Beltrano. Pode não chegar. O que conta, o que é preciso, é ter alguma coisa para dar, algo a ver com o negócio, pelo que é preciso pertencer
à organização. Conhecer o meio nestes mundos pode ser a diferença entre a vida e a morte. Em Sarcelas, em Nova Iorque, em Moscovo, em Nápoles, em Tóquio, em Joanesburgo. Em qualquer lugar onde se respire daquela maneira.
Vem o Cozido à Portuguesa, acompanhado a shots de vodca. Música para o ouvido dos russos. Este grupo adora a cozinha portuguesa, conhece os bons restaurantes, dos mais caros aos baratos. Fazem quilómetros se sabem que o melhor leitão está em Viseu. Vão se for preciso ir até Trás-os-Montes só para comer aquele Cabrito Assado no Forno… Metem-se no carro até Aveiro só por causa de um certo bacalhau na Costa Nova.
O louro calmeirão Marat Andreichev é ali quem manda e toma a palavra. Ele e o mal-encarado Xico Chino.
«Mesmo bom. Cozinha portuguesa mesmo bom.»
«Este cozinheiro faz o melhor Cozido à Portuguesa de Lisboa e arredores.»
«Porquê Lisboa e arredores?»
«Já comi melhor no norte. Valpaços, um dia levo-os lá.»
«Então Valpaços cozido bom. Cozido com Vodca, Valpaços?»
«Cozido com tudo o que quiserem.»
«Ahahahahahahahaha!»
Mais uns quantos a rir, a rir em uníssono. Mais penaltis de vodca.
«Onde é que anda Barbosa?», perguntou Andreichev.
«O Barbosa anda lá nos negócios dele.»
«Bom dinheiro. Barbosa bom dinheiro.»
«O Barbosa agora anda armado em empresário. Já viste o que ele saca às pessoas com aquelas empresas a fingir? E depois mete-o todo em offshores.»
«Barbosa bom dinheiro. Barbosa bom dinheiro.»
«Bom dinheiro, mas todo para ele. O Barbosa não dá nada a ninguém.»
«Então Barbosa mais comilão que todos nesta mesa.»
«Ahahahahahahahaha!»
Mais uns quantos a rir, a rir em uníssono. Mais penaltis de vodca.
«Bocadinho ganancioso… Se calhar, Barbosa bocadinho ganancioso.», disse Andreichev. De ombros encolhidos, Zacarias observa certa amargura no Chino. É ponto assente entre todos que Barbosa controla de mais para retribuir de menos. E cada vez mais vodcas vão distribuindo cada vez mais conversas em desafio. E como quem conta um conto, acrescenta um ponto, a profusão aumenta. Zacarias não fica nem pode ficar atrás, faz eco com os outros. Convém dar nas vistas. Às vezes parece um conspirador bolchevique.
«Vai chegar o dia! Vai chegar o dia!», disse Zacarias.
O barulho na sala torna-se ensurdecedor. O vodca nunca mais acaba, há ali vodca para três, quatro, cinco almoços. Quem pode adivinhar? Quem pode realmente aferir de entusiasmos e fígados? Fraquejar é que nunca. Andreichev não gosta de quem fraqueja. Antes desfalecer em coma alcoólico, a poder ser inconveniente ao chefe. Fosse como fosse, até o chefe querer, todos naquela mesa, sem excepção, só tinham mais é de aguentar. Aguentar e muito, pois só pela hora de jantar acabou a fartaria, a barulheira tal que já ninguém se ouvia nem a si próprio.
Foi, portanto, um muito torto Zacarias a ter de regressar a Lisboa. Mal conseguia dar dois passos a direito. A conduzir, ia ter de ir muito, muito devagar, não pela ponte, mas directo a Cacilhas, para o cacilheiro dos automóveis. Mesmo assim foram precisas três bicas duplas seguidas, depois outra bica dupla no terminal de embarque. Próxima paragem: Avenida José Malhoa, décimo andar, escritório envidraçado, a ver o Tejo.
«Conta lá bem isso.», disse Barbosa.
«Cada vez piores. Se ouvisses o que disseram de ti…»
«Imagino…»
«Foste saco de pancada para toda a gente. Até dos russos.»
«Fica tranquilo.»
«Estou farto daquela gente. Farto. Hoje foram os vodcas. Detesto vodca. A beber vodca e a aturar russos. Detesto russos. Detesto. E aquele Andreichev a olhar, a gozar connosco,
a ver quem é que aguentava mais vodca. E o cabrão do Chino a rir. Mal tocou na bebida, o animal. Esse estava à vontade, o cabrão…»
«Calma homem, calma. Não vamos estragar tudo logo agora. É preciso ter paciência. Calma.»
«Eu sei, é preciso ter calma. É tudo o que eu faço: ter calma.»
«Vá-lá… Olha, tenho aqui uma coisa para ti.»
Esticou-lhe um envelope da secretária: três mil euros em notas de quinhentos.
«Mamma mia. Muito obrigado, Chefe.»
«Mereces, Zacarias. Mereces.»
Zacarias agradeceu num forte abraço, mais como obediência que outra coisa. Ele que exausto já mal pensava. Só conseguia ver-se em casa. Aquecer qualquer porcaria no micro-ondas, esparramar-se no sofá, ver televisão, beber, arrotar, amolgar latas de coca-cola, atirá-las para um caixote de papéis apropriado para esses fins ali mesmo ao lado do móvel do televisor. Adormecer depois nesse seu longo sofá. Sem cabines telefónicas, Polícia Judiciária, Inspector Bettencourt, peças de automóvel roubadas, envelopes com notas, bandos e gangues, Xico Chino, máfia russa, Marat Andreichev, vodca, cozido à Portuguesa, Barbosa… Tudo sedimentado em camadas. De cansaço, acumulado, acumulando, como os despertadores.
“”Tu Cá, Tu lá” é um conto incluído no livro “Praia Lontano” (Ed. Letras Paralelas).
*
Pedro Góis Nogueira nasceu em Lisboa em 1974 e vive há um ano na Galiza, em Ourense, onde trabalha como freelancer. Tem dois livros publicados, ambos na editora Letras Paralelas, um de poemas (Estrada dos Prazeres), o outro de contos (Praia Lontano). Trabalhou em viagens, fez jornalismo desportivo, experimentou a rádio e o cinema. Pode ser lido quotidianamente no blogue Desertações.
Foto do autor por Valério Romão
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