“… O mercado tá de olho
é no som que Deus criou…”
Heavy metal do Senhor – Zeca Baleiro
“… Porque não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.”
O peregrino – Sérgio Vaz
Esses dias me perguntaram numa palestra: O que você tem lido? A curiosidade maior era saber se os livros da periferia e de autoria negra são meu repertório exclusivo.
Falei sobre algumas leituras que ando fazendo, mas principalmente da minha intenção em ser livre pra ler e focar meu trampo como eu bem entender. Já ando cheio de muros que não dou conta, mas ir além da esquina, é algo que altera minha cria e isso é do meu agrado.
Sigo na batalha de finalizar meu primeiro romance, e quando se escreve um romance é bom ler vários desses, nénão? Muitas encruzas, desde a tentativa de destruição do gênero proposto por Cortázar ou os monólogos e fluxos de consciência de Virgínia Woolf e Clarice são diálogos possíveis que tento fazer.
Mas há outros cânones que leio, anoto, viro de ponta cabeça e não me empolgam. São livros endeusados que não dão liga, mas no céu ou numa biblioteca, deus é a imagem da perfeição, e nós, mortais leitores, carregamos essa culpa grudenta e o castigo por não entender a lei, por vezes cruel e punitiva, desse deus chamado cânone.
A busca sedenta pra se tornar um semideus faz com que escribas, inclusive brazucas, repitam fórmulas narrativas, de linguagem, de personagens e principalmente o clima melancólico-pálido-burguês de sempre, e essa insistência me repele.
O diabo é o fazer de quem escreve, que se não demonstrar, mesmo na negação, que seu referencial é esse bendito cânone, fica em coma, toma a pílula da inexistência. Uma literatura que não se curva feito um plebeu da Grécia Antiga, ou que se nega a ser escrava do Império Romano, paga o preço imposto pela nobreza editorial e crítica, que elege os iluminados e os pecadores da palavra alheia.
Não é à toa que em alguns dicionários a palavra cânone aponta pra etimologia da palavra grega kanón, e do hebraico kaneh, um cano de medidas, símbolo fálico utilizado no mundo cristão pra definir norma ou regra.
O deus cânone é uma lorota tão bem contada que há, entre os chamados pecadores, aqueles que justificam a inexistência literária de outrem pela falta de temor a deus. Só que a gente sabe que toda crença-cega impõe suas verdades e não abre um tiquinho de espaço prum sotaque diferente.
Até porque não é só santo canonizado que merece valor. Em “A Alma Encantadora das Ruas”, João do Rio conta que S. Gurmim e S. Puiúna, nunca foram reconhecidos, mas intercedem por dor de calo e de nevralgia que é uma beleza. Assim como muitos escritores e escritoras que nunca tiveram fortuna crítica e nem premiações, mas fazem milagres com a palavra.
No meu caso, sigo como um simples e mortal leitor, que escreve e publica, sem grande distribuição, megafeira, jabá na vitrine, crítica contratada ou dica da semana na telinha, porque não sou santo, dificilmente serei e ainda corro o risco de ser considerado um ateu verbal, um herege, digno de queimar na fogueira eterna do pecado literário.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA DA PALAVRA COMUM: a fotografia do autor é de Sonia Bischain.
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