Caderno Galego [01]:
Um longo tempo nos pulos do mar
Um barco ao longe vem lembrar aquele fogo de juventude, uma pedra parecida, mas a carta é breve. Só queremos a letra de uma boca marinheira, universidade de sal a sal, sabes? Ter os nomes novos desta terra começada, golpes de luz e imaginações daqui. Esse vocabulário dos trabalhos locais, o tempo e maneira da fala, os braços fortes desta gente do mar, tão enfolada em durezas que a gente não entende, cordames de fainas e instrumentos antigos. Eu só gostava que viesses aqui ver o mar. Baloiçar devagarinho aquelas cantigas antigas que repetíamos na escola, cadernos novos para estrear um tão velho refrão, leda m’ando eu, leda m’ando eu, invencível jangada nas travessias do amor. Emocionam com força esses poemas de que sabemos certas magias e melodias inventadas, mas só isso basta. Queremos assim cada sonho, o passinho litoral que trazemos de longe e queremos encontrar aqui, porque a terra é sempre generosa, e só nos permitimos sonhar com toda a força. E o meu passinho vem daquela terra de pescadores que se chama Peniche, vila de naufrágios, peixe bom e onda surfista, onde de miúdo começava a saber aquelas cantigas que diziam de umas aves que de todo o amor cantavam, língua tão de cantar, modinha certa, toada tão serena connosco essa poesia galego-portuguesa que era barco no longe, esses barquinhos de no longe passarem.
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Hugo Milhanas Machado nasceu em Lisboa [1984] e reside na Galiza. Exerceu como docente na Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidade de Salamanca entre 2006 e 2019 e doutorou-se em Filologia Moderna pela mesma instituição, com a tese Ruy Belo, a ver os livros: ensaios na trajectória de uma obra poética [2015]. Dirigiu e coordenou o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca, o TENSA – Teatro Naval de Salamanca, colectivo de pesquisa de artes de palco, e o programa semanal “Historias de la Música Portuguesa” na Radio USAL [2007-2019]. Desenvolve trabalhos em áreas como os estudos marítimos, a etnografia literária e musical portuguesa, a história velocipédica, os estudos radiofónicos, o teatro experimental e a música electrónica. Integra, com Julia García-Arévalo Alonso, o projecto multidisciplinar GLOSALENTA.
Obra literária:
Poema em forma de nuvem – Gama, Torres Novas, 2005
Masquerade – Sombra do Amor, Lisboa, 2006
Clave do mundo – Sombra do Amor, Lisboa, 2007
Entre o malandro e o trágico – Sombra do Amor, Lisboa, 2009
As junções – Ed. Artefacto, Lisboa, 2010
Uma pedra parecida – Do lado esquerdo, Coimbra, 2013
Onde fingimos dormir como nos campismos – Enfermaria 6, Lisboa, 2014
Supertubos – Enfermaria 6, Lisboa, 2015
Salas bajas – Enfermaria 6, Lisboa, 2017
Um longo tempo nos pulos do mar – Douda Correria, Lisboa, 2018
Fotografia gentilmente cedida pelo poeta Xosé Iglesias.
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