«Corpos que olham para trás, corpos que se manifestam para frente»
«As bruxas de hoje não podem ser queimadas como no passado, ou pelo menos, não deveriam. Elas agora, por meio da palavra, trazem ao universo do patriarcado os valores femininos, reinserem na história das mulheres o prazer pelo / do / no corpo, a solidariedade entre as mulheres, buscam cada vez mais a conectividade com a natureza e a ancestralidade e colocam em pauta o questionamento do valor único de reprodução humana, em que o manual do corpo feminino forjado pelo homem, no auge da elaboração da ideologia civilizatória do pensamento cristão-patriarcal, criou para a mulher ocidental.
Nessa perspectiva, o II Tomo das Bruxas: Corpo & Memória, sob coordenação de Marta Cortezão, constitui na essencialidade dos textos uma desconstrução dos manuais de ódio, tortura, morte e invisibilidade propagados pelos registros ditos sagrados que dizimaram milhares de mulheres ao longo da história. É um livro que aborda em seus mais variados poemas e narrativas poéticas, largas reflexões sobre os atravessamentos das trajetórias das mulheres escritas por mulheres de diferentes localidades do Brasil e do exterior acerca do temário das memórias e das resistências das lutas feministas».
Cristiane de Mesquita Alves (Professora adjunta do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará – ILC/UFPA. Líder do Grupo de Pesquisa Mulheres Amazônidas e Latino-americanas na Literatura e nas Artes MALALAS – UFPA/CNPq).
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IN VITRO
Acordei numa madrugada fria
gritando e suando ensandecida.
Não cria no que via:
um pote de vidro sobre a mesa
de madeira velha do porão,
lá estava meu filho,
envolto no cordão.
Rasgava-me
o peito
o ventre,
de dor
de fúria
de culpa.
Vi-me ali ferida, caída, vazia,
e um ser natimorto a me observar,
como se fosse a culpada
por sua vida não vingar.
Vi-me igual à Frida que
pintou esse sonho meu,
e eternizou nossos filhos
ela, na tela e eu, no papel.
Tainá Vieira, é natural de Juriti/PA, licenciada em Letras, especialista em Linguística e atualmente é mestranda em estudos Literários. Publicou Prosa & Panela, em 2019. E, em 2021 e 2022 participou de antologias de contos e poemas.
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CATARATA[S]
Tenho muitas águas
nos olhos –
um cortinado em queda
pelos meus rochedos.
não fosse o lago
(aos meus pés)
a refletir meus sonhos
eu não reconheceria
as distâncias.
Ana Liz, Santa Luzia/MA, é poeta, cronista, professora e mestranda em Letras. Publicou oito livros, tem participação em várias antologias e organizou duas antologias com textos de autoria feminina.
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CURUMIM
Quando eu esqueço de mim?
Quando eu me deixo de lado,
em segundo ou até em último plano?
O que eu digo para mim no silêncio
da minha mente, quando ninguém me ouve?
Em um mundo desigual
Patriarcal
Loucura total
Devo me observar
Cuidar de mim
Nutrir meu eu, minha criança interior
Ninguém melhor do que eu!
Amor-próprio
Curumim
Sandra Santos, nasceu em Minas Gerais, mas mora na Alemanha. Publicou quatro livros e já participou de várias antologias. O seu livro mais recente é HERstory – escreva a sua história!, uma reflexão feminista ao longo da História.
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Escrevo, por fim, os sortilégios que nos movem: não há mais sileciosamentos que nem memoricídios, estamos atentas e cientes do perigoso avanço da polítiva reacionária de extrema direita. Seguimos em marcha, nas trincheiras da literatura e das artes, nas ruas, nas periferias, na Amazônia, no Brasil e no Mundo para, de posse de nosso Feminismo, gritar em uníssimo: “Somos as netas de todas as Bruxas que vocês não conseguiram queimar!”.
Marta Cortezão
Escritora e poeta amazonense. Coautora em diversas antologias nacionais e internacionais (poesia e prosa), é autora dos livros Banzeiro manso (2017), Amazonidades: gesta das águas (2021 e 2024), Aljavas para cupido (2023), meu silêncio lambre a tua orelha (2023) e imagética do despropósito (2024).
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RIGEL
a pedra do silêncio
acertou-me esta noite
pedra por pedra
sobre a muralha
confusa entre metáforas
nenhuma estrela pode salvar-me
a tristeza é um rio
segue seu curso
lonjura
o mar é distante
brilha Rigel
sem ser bússola
noite de nuvens
passarão?
Maria Alice Bragança, nasceu em Port Alegre/RS. É autora de Quarto em quadro, Cartas que não escrevi e Misterioso pássaro. Participou de antologias e publicações no Brasil, Cabo Verde, Chile, Espanha, México, Peru e Portugal. É diretora de Comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES)
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II TOMO DAS BRUXAS: CORPO & MEMÓRIA, Editora TAUP. Curitiba – Brasil. 1ª edição julho de 2024. Organizadora: Marta Cortezão
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