O livro começa com um “Regressei”, com um movimento de viagem e uma cartografia em que existem os longes inacabados como desenhados com um fino lápis. A linha do regresso e o alento afetivo e narrativo que abre é cortada bruscamente com o movimento assimétrico da foice a ceifar o trigo e o tempo em ciclos e círculos que deu metáfora ao pensamento para inventar a agricultura. E ainda se abre no poema uma outra possibilidade temporal e narrativa, a do mar e a potência do humano a metaforizar o movimento primordial e constante das marés. Todos os fios narrativos são atravessados por imagens que são metonímia da presença humana, evocando dum lado o agudo, o cortante, nas unhas e nos dentes e a degradação na palidez, e doutro esse alarme para qualquer cousa como a possibilidade dum desenlace catastrófico, dum futuro de terra devastada, que já vai como carga nessa “dupla sombra dos barcos”, imagem do humano e as suas dualidades, sejam elas a marca de como apreendemos o mundo ou a representação das escolhas e as bifurcações dos sentidos.
Todo o livro está atravessado por estas linhas de fuga inacabadas e dinâmicas, portadoras de energias e sentidos: o paraíso que se lembra ou se profetiza, descrito como frágil ou dificilmente percetível, a força do ritual que por vezes consegue impregnar a palavra e dar-lhe o seu fim transformador, o testemunho da destruição e a precariedade, dos estilhaços do mundo, a esperança no caminho da salvação aberto pelo afeto e a capacidade de ver longe, de manter rotas certas ou de portar luz dos personagens femininos, dos viajantes, dos rios e das aves. Narra a história da civilização como um relato das relações entre o humano e o material com a mediação do logos, palavra e pensamento, com estilo fundamentado nas elipses e na captação do essencial por metonímias que nos dão acesso ao todo: a presença primigénia, soberana e mágica da terra, a irrupção do humano, a invenção da agricultura na repetida metonímia do cereal, a perda da transparência dos signos e do sentido do destino, a continuidade da enunciação do natural e a esperança na reconstrução da harmonia entre o humano e o cósmico. Episódios todos relatados sem sequência, mas numa linha de constante presença do todo e a tensão à volta das suas relações, como se tudo convergisse para o momento do corte da harmonia ou a esperança no seu retorno, não se sabe nunca se previsto ou não, que vertebra sem organizar, sem sentidos únicos, a presença humana no seu habitat.
“Antes do homem havia a terra:
geografia mágica, sagrada…
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os deuses,
quando passam, desviam o olhar” (página 46).
Habitat, porque este é um livro sobre o habitar, sobre a casa. Alguns poemas põem o foco sobre o habitar fazendo, plantando e cultivando. O poema titulado “Desconhecemos as cicatrizes das mãos” toma as mãos como metonímia do humano, mãos que se transformam e que ficam marcadas com cicatrizes e gretas pelos instrumentos de lavoura, mós, enxadas ou arados, com os que o humano transforma a natureza para o seu sustento. Mãos, que como os olhos, entram na matéria e a transformam e que, por sua vez, são veículo da transformação do humano no próprio ato de fazer, diluindo relações hierárquicas entre sujeitos e objetos numa realidade de influência, dissolução de margens e interpenetração constante.
Noutros poemas se representa o humano como uma certa tensão na postura que lhe vem da sua verticalidade e uma existência paradoxal que se sente por um destino que se deseja, “invocando”, mas do que não se tem a certeza, pois parece que o centro, a emanação da energia, o sol que traça a linha e projeta o humano em sombras, sempre está fora, como no poema que contem o verso que dá título ao livro:
“De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue” (página 37).
Percorre os poemas uma esperança de que o humano exceda o textual, que tenha a natureza do orgânico e o cósmico. Assim a palavra por momentos consegue representar a fluidez do mundo material em imagens de continuidade e liquidez, num quadro em que começa com um gesto de vontade de fazer e prender, de ter raiz, no poema “Plantei na janela uma hera inclinada para dentro”, poema sem medo ao corte da mutilação que noutros poemas é ameaça constante. Ou no poema “Escavo no peito um declive de seara”, em que a continuidade material entre o terreal e o corpo humano é tal que permite em ambos o labor agrícola.
Os verbos de enunciação, lembrar, esquecer, contar…, são ditos com a esperança de estabelecer uma aliança entre a presença humana e o habitat natural que se situa num momento que por vezes é remoto e por vezes é profetizado. Em vários poemas recolhe-se a ideia de linguagem ritual, sagrada ou mágica que vai atravessando esse relato da humanidade a habitar a terra, como no poema “Temos um quebranto no friso do olhar”. A aprendizagem do ritual na infância permite ter esperança no poema “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”, significado reforçado pela repetição constante do adjetivo “verde”, na possibilidade do paraíso, a harmonia, o sentido no passar do tempo. Em outros poemas a enunciação não atinge toda a potência da sua energia e só nos dão testemunho dum movimento de fuga neste mundo dessacralizado da ordem artificial, como no poema que começa com os versos “Nem sempre as janelas oferecem às casas/ todas as possibilidades da luz”.
Outra possibilidade de sentido para o tempo humano se abre com os poemas que variam sobre o movimento, seja o movimento das aves, dos rios ou dos humanos. As aves, os viajantes e os rios fluem para uma mesma mensagem, o de uma rota, um destino, uma memória semelhantes, signos de um alfabeto cifrado que o humano conhece na viagem, como nos poemas “Conta-se que há laranjais que rebentam”, “O viajante ajoelhou-se sobre a terra”, “Seguimos pela noite indiferentes”, em que lemos o verso “destino das aves que trazem a luz das auroras riscada em suas penas”. Ou no poema final, “Naquele mês espalhara-se a insólita notícia”, com a mínima história das mulheres que abandonam as casas e sobem às colinas por terem pressentido a vinda das andorinhas. Ou aqueles poemas que descrevem situam o humano nas margens: a “curva do tempo na concha ansiosa do olhar”, “os homens [que] caminharão na berma das estradas carregando os filhos”, os que “vivem na linha costeira dos continentes” e “enfeitam os pulsos com amuletos de búzios”.
Mas o que fica mesmo inscrito na memória são os versos que falam de um momento de corte, que trouxe o “desvario dos caminhos” e “o exílio de pássaros e aves”, momento catastrófico da cisão entre a ordem natural e a humana que se pressagia nos poemas “Vem do rio um vento interminável, como um cerco” e “Quando as espigas surgiram de repente” ou que se lembra no poema “Conhecemos a obscuridade dos quintais”, impedindo com este cruzamento de perspetivas temporais contar a história humana em linha reta ou em sequência irreversível. É um episódio que parece poder acontecer em qualquer momento, o dum antes e um depois de uma vivência primordial, paradisíaca, essencialmente frágil, que algum saber desfaz, como no poema “No verão todas as manhãs são belas” e a partir do qual o humano já não consegue decifrar o mundo, a pesar de a natureza continuar a ser tão transparente como quando a habitava como paraíso, como no poema que começa com os versos “Envelhecemos com uma vara/ de medir o sol na linha do olhar”: não entendemos os sinais inscritos, ainda que o piar dos pássaros seja tão nítido. Mas a perda do sentido pode ser reversível, como no poema de tom profético “Um dia nos pátios das casas” ou no poema “Aguardamos uma luz de seiva”, um poema de esperança na repetição dum “fiat lux”, duma luz que afaste o humano do caos, da morte e da culpa e dê um sentido único e farto ao cósmico, o orgânico e o humano.
Há o texto, há a autora e a leitora que escreve estas linhas, há a presença da palavra que venha dos longes que vier sempre se faz presente. Há o contexto do tempo com que a poeta fala em palavra transformada pela ação do dizer poético em símbolo que irradia e que é necessário à existência situada no tempo e no espaço. E há o meu olhar que recebe, que compreende desde a sua memória sensitiva, emocional e lírica. Nasci virada a norte, com um dialeto lírico levemente diverso ao da poeta Graça Pires no que ao signo do sol diz respeito. Conheço, estão gravados na minha memória espiritual galega, nos ritos com que cresci, as metáforas que se vivem nos rituais da roda anual do sol, mas também uma tradição lírica, musical e literária, mais recente, que oscila entre o discurso irónico sobre o símbolo solar e a invocação da sua vinda nas alvoradas, tradição, ou vaga contemporânea, que se sente confortável em cenários de luz noturna e diálogos com o luar. Dou como exemplo os cenários em que nos “roubarom o sol” ou em que se prepara “um naufrágio com a ausência cúmplice do sol” dos poemas de Manuel António ou o “Vem-te aurora” da “Alvorada” de Rosália de Castro.
Por outro lado leio com a minha memória mais pessoal, a da criança que se apaixonou por um romance intitulado Os filhos do sol, que contava a história do faraó herege fundador de uma nova religião, a que fixou na sua arca imaginária pessoal o cenário do sol traçador de caminhos sobre o mar que lia à sombra da torre de Brigântia. Apaixonei-me por esta linha da tradição lírica lusitana que dá sinal da descoberta e a contínua demanda duma medida do universo. Compreendo os achados poéticos como achados sem mais e tenho este livro nas mãos com a emoção de um manuscrito encontrado que não quero datar, que me dá testemunho de quem se situa para além do tempo, na tradição, como dizia Daniel Castelão, para encontrar chaves e interpretar o tempo sequencial, essa dimensão em que o humano se desenvolve sempre em linha reta sem nunca poder voltar.
E no entanto este livro tem data, está enraizado neste tempo de dissolução dos territórios e as suas culturas, na duplicidade da metáfora no agrícola e no linguístico de diversas linguagens, da desfeita da mater como matéria que informa todo o pensamento. A palavra “casa” dos versos de Albano Martins que servem de abertura, uma casa que herdamos e que é a própria vida, dão a moldura para pensarmos como poetas a casa, a comunidade e o destino que se decide nesta linha do tempo que passa cortando e que não podemos deixar de transmitir. Há uma postura que se torna emocional e energética, essa vara que é o humano. Na literalidade do livro não leio outra intenção para além da enunciação das palavras, e para mim, como leitora e poeta, é suficiente, pois todo o livro é atravessado por um tom de dizer ritual, como quem quer trazer a emoção e a ação de um tempo em que dizer a palavra é fazer presente a cousa. Uma vara de medir o sol é um exercício de imaginação material, de leitura do mundo e de narração, poesia com movimento de escavação, inscrição, poesia côncava que explora o que se passa no “ângulo interior dos séculos”, da fibra mais íntima do devir humano, poesia que nos faz compreender porquê a escrita nasceu como inscrição, simbolizando os sons aéreos em signos sobre a pedra. Poesia que se sustenta na compreensão de que a natureza é literal e que os poetas leem quando escrevem e os humanos traduzem quando falam.
Cf. .
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