O Pavel conheceu a Violeta de uma maneira totalmente fortuita. Aconteceu durante um recital poético coletivo que ele organizara. Uma das participantes disse-lhe ao ouvido que outra das poetas não viria; sofrera um pequeno acidente de trânsito. Naquele preciso momento, outro dos poetas, Anton Kirchen, apresentava-lhe uma das pessoas que acudira à leitura dos poemas daqueles seis poetas, cinco argentinos e um polaco, o próprio Pavel.
— Pavel, ela é Violeta — apresentaram-lhe.
Assim que lhe apresentaram aquela mulher morena, de caracóis rebeldes, ele perguntou-lhe:
— E tu escreves poesia?
Ela ficou paralisada um instante. Pestanejou duas vezes e com um sorriso disse:
— Escrevo.
— Gostarias de ler hoje aqui?
Novamente ela hesitou. Depois disse:
— Gostaria… —e criou o sorriso mais grande da noite.
E foi assim como o Pavel e a Violeta se conheceram e descobriram aquele vínculo comum: a poesia.
*
O Pavel era polaco de nascimento, mas filho de uma espanhola e um polaco. Havia muitos anos que morava em Berlim, onde criara um coletivo poético de escritores em língua espanhola. Ao longo do tempo chegara a criar uma pequena editora pessoal, onde publicava poetas de que gostava, sempre em espanhol. A habitação e a editora estavam no seu apartamento da Vinetastraße no bairro de Pankow. Viajara à Argentina por motivo do seu trabalho, ele era engenheiro informático e fora convidado a desenvolver um projeto com alguns colegas da capital argentina, para o qual ficaria ali dous meses. Embora gostasse do seu trabalho, a poesia era a sua paixão, tanto que não queria morrer sem ter feito um programa que criasse poesia de qualidade suficiente como para ganhar um prémio literário.
A Violeta acabava de sair de um relacionamento de quase vinte anos que lhe deixara a alma marcada de cicatrizes que tentava esconder a todos, com a sua autoestima machucada. Aquela mesma tarde ainda nem sabia se aceitaria o convite do Anton Kirchen para aparecer na leitura poética. Como tantas outras vezes, perguntou à sua avó morta, aquele fantasma que sempre a acompanhava, mas enquanto esperava um sinal, algum tipo de comunicação dela, apareceu diante do local onde teria lugar a leitura poética. Se calhar, a avó sim respondera e conduzira-a até ali.
*
Aquela mesma noite, depois da leitura, a Violeta levou o Pavel a um local onde se dançava salsa às sextas no bairro de Palermo. Depois, ela conduziu-o à sua casa, na rua Reconquista, onde ele alugara um apartamento para aqueles dous meses. Desde aquele momento, começaram a se encontrar. Gozavam juntos da poesia. Ele, para ela, era poesia feita carne. Sem estar ciente de tudo, ela começou a se apaixonar… por ele ou polo que escrevia? Amiúde perguntava à avó fantasma, mas ela, naqueles tempos, ficava muda. A Violeta começou a quitar os seus escritos da gaveta e a compartilhá-los com o Pavel. Ademais, falou-lhe da sua avó morta com que falava constantemente, da sua vida desigual, mas nunca lhe dizia o nome de pessoa alguma no seu contorno, dos seus ex, dos seus amigos. A todos eles se referia com números ou referentes: o meu primeiro ex — o principal, o que lhe lixara a vida —, o meu ex da universidade, o meu ex do gabinete… Quando ele lhe perguntava polos nomes deles, ela apenas dizia: «Se eu lhes der nome, eles voltariam à minha vida».
*
Um dia qualquer, enquanto olhava pela janela da cozinha para o jardim do seu apartamento, sentiu a necessidade de escrever o que dentro lhe bulia. Escreveu-o em inglês:
Who
on Earth
are you?
… wrong question…
it was not on Earth
you were conceived
… who
in Heavens
are you?
Depois perguntou à sua avó fantasma: «Gostas?» Porém, não teve tempo de esperar resposta. Nesse preciso instante chegara uma mensagem dele convidando-a a tomar uma meia-lua com café no Amarradero. Ela disse só que sim.
*
Um dia ele disse-lhe:
— Amo-te.
Ela não soube reagir. Os seus olhos eram emoção. O amor escorregava polos bordos, mas as palavras, ai as palavras, ficaram dentro, como sempre. E ficaram dentro para sempre, porque ela nunca foi capaz de responder. Contudo, ele dizia-lhe:
— Não me importo se não me dizes que me amas, porque já o dizem os teus olhos…
Tanto estudar psicologia para aconselhar as pessoas não lhe estava a servir a ela agora de nada, porque era como um livro aberto. Oxalá que fosse um livro de poemas para, ao menos, deixar abertas as interpretações das metáforas dos seus olhos.
Violeta amava aquele homem. Deixou escrito no seu diário algo que só ela ia reconhecer no seu interior, porque a ninguém ia falar disso, redigido em terceira pessoa, se por acaso tivesse que negar a sua autoria. Porém, o seu diário era o seu lugar mais íntimo.
» Ela chegou a um recital de poesia apenas para escutar, mas termina lendo na mesa junto com cinco poetas mais, um deles estrangeiro que, de um dia para o outro, torna-se o seu editor com entusiasmo, paixão e amor pela sua arte e a sua pessoa. Ela enfrenta-se a todos os seus fantasmas mais obscuros e mais recônditos, insuspeitados e silentes. Aqueles que a fizeram crer que ser escritor não era senão uma fantasia infantil.
» O estrangeiro declara-a poeta, como antes fizeram outros, o seu ex-casal por exemplo, e ainda mais alguns, mas nunca lhes deu crédito porque não acreditara neles, mas nomeadamente por não acreditar em si própria.
» Mas hoje acredita. Acredita, embora seja tão inverosímil. Foi difícil. Deveu vencer-se novamente. Mas ei-la, para gavear até o topo da onda que sabe que chegou para levá-la exclusivamente consigo.
» Fecha os olhos. Arrisca-se e deixa-se levar.
» E tudo quanto foi dor, frustração, confusão, é agora uma massa sangrante que emerge debaixo de camadas de membranas entre os primeiros estertores da vida.
Um dia, o Pavel encontrou esse fragmento no seu correio eletrónico. Foi muitos meses depois de ter conhecido a Violeta. Ela enviara-lho como uma prova dos seus sentimentos, mas ele, por alguma estranha razão, nem reparara nele. Até que o viu por acaso, a procurar outras cousas no seu correio eletrónico, porque ele não apagava nada. Precisamente, como era um correio eletrónico, não pôde esnaquizar o texto como teria feito se fosse um correio em papel. Eram outros tempos. A palavra virara eletrónica.
*
Naquela manhã, a Violeta recebeu no seu telemóvel uma das melhores surpresas da sua vida. Tratava-se da capa do seu livro de poemas. Sem lhe dizer nada, o Pavel preparar o livro, mandara-o a uma tipografia lá mesmo em Buenos Aires e fizera as cópias do seu poemário.
— Por que fazes isto? — perguntou ela.
— Porque te amo.
— És o meu anjo. Sim, és um anjo.
— Quero que venhas viver comigo a Berlim.
— A Berlim?
Sempre fora o seu sonho ir viver a Europa. E nem só, Berlim era precisamente a cidade que ela teria escolhido sem pensar duas vezes.
Começaram a fazer planos. As cousas aceleraram porque ela perdeu o trabalho.
— Vês? — comentou ele—. É um sinal do universo. O teu lugar está comigo em Berlim.
Tudo parecia ser assim. O entusiasmo cresceu nela. Para sempre ficava na sua memória aqueles momentos intermináveis de silêncio, ambos deles abraçados, quando o Pavel ocultava o rosto no cabelo dela, onde parecia alcançar outra dimensão, naquela floresta de caracóis, para acabar dizendo-lhe: «Quero ser o único morador do teu cabelo».
O cúmio da felicidade foi quando apresentaram o poemário dela num local da rua Viamonte. Não é que houvesse muito público, mas o facto de apresentar aquele seu poemário com o homem que amava e ser reconhecida como poeta, supôs para ela uma nova etapa na sua vida.
*
No aeroporto, o Pavel esperou durante horas pola Violeta. Ele chegara com muita antecipação, mas ela não dava sinais de vida. Ligou para ela. Não respondia. Durante uma hora, ligou por volta de quinze vezes. Nada. Enviou mensagens, vinte e tal. Nada. O avião ia partir. Não podia perder aquele voo. Embarcou sem ela, com a alma feita em pedaços. Durante o voo, para além de chorar, perguntou-se quais os motivos porque ela não apareceu no aeroporto. Pensou em tudo: uma crise de ansiedade, arrependimento, reencontro com o seu ex a que convencera para ficar com ele, ataques de loucura.
Nos dias seguintes à sua chegada a Berlim, ainda escreveu, mas não teve resposta nenhuma dela. Não dava compreendido aquele comportamento, mas a vida prosseguia e ele tinha de superar aquela situação, porque Buenos Aires ficava muito longe e o seu coração não podia ficar sequestrado.
*
Naquela manhã da partida, a Violeta sim estava pronta para ir embora. Turrava da imensa mala para fora e um táxi estava fora a sua espera para levá-la ao aeroporto de Ezeiza. Quando chegou à sala da casa, viu a avó sentada no sofá. A velha sorria como uma miúda que sabe um segredo que mais ninguém conhece.
O rosto fulgurante da Violeta perdeu a sua expressão quando a avó lhe disse do sofá:
— Á, menina, levas tudo contigo?
— Levo.
— E o passaporte?
A Violeta levou a mão para o bolso do casaco. Não estava lá.
— Vês? Agora, procura, procura…
E a avó riu às gargalhadas, contente, porque voltava a ter o controle.
*
Dous meses depois de o Pavel publicar a sua estória com a Violeta, recebeu finalmente uma mensagem dela através de uma amiga comum. A Violeta dizia-lhe nela: «Não entendo como pudeste ser tão desalmado e escrever esse final da nossa história. Tu nem imaginas o que aconteceu. Inventaste um final infantil, que pretendeu ser engraçado, mas que infelizmente foi ridículo. É triste que não percebas nada».
Pelo mesmo canal, através da amiga comum, o Pavel respondeu: «Com gosto eu mudaria o final da estória se tu me contasses que foi o que realmente aconteceu, se eu soubesse por quê não vieste naquele dia ao aeroporto e nunca respondeste às minhas mensagens».
Porém o Pavel nunca obteve resposta e a estória fica com o final inalterado. Talvez, depois de tudo, só a avó morta saiba mesmo que foi o que correra pela cabeça da Violeta.
***
Escrito com a Mondscheinsonate, de Ludwig van Beethoven, a soar de fundo.
Em Praga, a 30 de julho de 2017
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