Talvez devia dizer adivinha: adivinha de Natal. Vejamos. Será que o leitor pode averiguar de que divindade estou a falar… se escrevo que se trata de um menino divino, filho de uma virgem e nascido numa gruta, no dia 25 de Dezembro, segundo a tradição acalentado por um vaca e um burro, que foi descoberto e adorado primeiramente por uns pastores, e recebe presentes, ouro e essências; e que anos depois terá uma paixão em que levará uma pesada carga, em cujo transporte cairá várias vezes, terminando tudo com um sacrifício sangrento. Bem, agrego novas pistas, falamos de um culto de origem oriental, concreta e parcialmente sírio-palestinense, que alcança seu auge no século I da nossa era na cidade de Roma, mas também ao longo de todo o Império, e –digo mais- que o seu culto se celebrava com jantares de amizade em que os adeptos comiam pão e bebiam vinho, sendo seu dia sagrado o domingo. Pronto, também direi que o sacrifício desta personalidade divina, chamada de Salvador ou Bom Pastor pelos seus adoradores, era uma acção redentora que lavava os pecados pessoais de quem se iniciava, muitas vezes com um baptismo, na sua misteriosa doutrina.
Nesta altura, prezado leitor, já sabe que falo da divindade cujo nascimento era celebrado em Roma no dia 25 de Dezembro, antes de que a Igreja Cristã trasladasse a essa data a festa do Natal, confessadamente para aproveitar a piedade já instalada à volta do nosso enigmático encoberto: o deus Mitra, o Sol Invencível. Mas não se assuste, não é o único que tinha uma biografia semelhante já que em toda a bacia do mediterrâneo o arquétipo de jovem redentor à maneira mitraica estendia seu culto e mistério sob múltiplos nomes e é Mithra Sol Invictus apenas um deles, fruto todavia da mistura entre o deus irânio Mitra e uma antiga deidade palestinense, como antes adiantava. Mas, por outro lado, a biografia atribuída a Mitra é parcialmente polémica, seus cultos estavam rodeados de confidencialidade e não é possível determinar a direcção exacta do fluxo de influências biográficas entre Cristo e Mitra, sob qualquer dos seus nomes. Acrescento, pelo seu interesse, que um sincretismo posterior sobre o sincrético Mitra, o culto ao deus Sol, chega a ser religião oficial romana e que esse é o culto favorito do Imperador Constantino, padroeiro do cristianismo, quem vela por achegar ao catolicismo elementos de seu culto antes e durante o singular concílio de Niceia –a que preside!- depois do qual vem a ser decretada a proibição da religião solar mitraica, já no 391, sob Teodósio, ficando o novo cristianismo como único sincretismo fortalecedor da unidade política imperial.
Não obstante, há quem diz que ainda mais do que o mitraísmo e derivados o verdadeiro competidor da Igreja naqueles momentos era o Gnosticismo. Em qualquer caso parece que tanto um quanto o outro foram influências e inimigos sérios para as aspirações de uma parte dos dirigentes do cristianismo da altura. E isso me conduz a clarificar minha intenção aqui, que não é em absoluto a de fazer qualquer tipo de alegato anti-eclesiástico nem cousa que se parecer. Mas chamar a atenção para uma tese, a das origens do cristianismo segundo o matemático e filósofo René Guénon, quem a princípios do século XX escrevia que achava claro que o cristianismo original nada tinha a ver com o posteriormente oficializado no concílio niceano, identificando o movimento inicial de seguidores de Jesus de Nazaret, à maneira em que a propósito era considerado pelo Islão inicial, apenas como uma escola de iniciação filosófica –tal e como isso era entendido no Mediterrâneo do momento- e carente de qualquer intenção dogmática e cultual. Um movimento inicial, que confessava Jesus como seu guia, senhor, Rabbi, mas nunca como um deus ao estilo greco-romano nem como uma hipóstase do Real Absoluto, já que como bons filhos do monoteísta Abraão uma identificação ôntica, única e última, entre um humano e o Ser seria inconcebível. Isto sem prejuízo de todas as veleidades politeístas e henoteístas* que marcam a história bíblica. René Guénon acrescentava que o cristianismo original toma a decisão de abandonar a sua hermética delineação inicial, que envolvia dificuldades notáveis para ser aceito no seu caminho iniciático –e gostaria de que isto fique longe de interpretações esotéricas ad usum. Mas era esse, precisamente, o título inicial do grupo: a Gente do Caminho –como são chamadas ainda hoje sem excepção as diversas escolas iluministas de Oriente- antes de ser denominado pela primeira vez na cidade de Antióquia com o nome de Cristãos, que significa messiânicos, nome que recebem até hoje nos países islâmicos (masihi). Mas dizia Guénon que a Gente do Caminho abandona a sua intenção, pelo menos em parte, por que? Com a reorientada, sugere, intenção de ser a nova base civilizacional para um Império em descomposição. E, segundo René Guénon, conseguiu na altura aquilo que pretendia.
Bom Natal.
*Henoteísmo: em rápida definição, espécie de politeísmo em que um deus, habitualmente associado com determinado povo, deve ser adorado com exclusão dos demais.
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