Eleme[Nt]ário é um colecção científico-poética (Flan de Tal), que nasceu em 2019, Ano Internacional da Tabela Periódica, pela UNESCO. Conversamos com o seu coordenador e editor João Pedro Azul sobre a origem deste projecto e os próximos livros a integrarem a colecção, seguido de uma selecção de poemas de “Cloro”, de Gabriela Gomes, “Estrôncio”, de Ricardo Tiago Moura e “Hidrogénio”, de Maria Brás Ferreira.
Como surgiu o projeto da coleção eleme[Nt]ário? É esta uma coleção com uma temática inédita na poesia em Portugal? A Flan de Tal (editora) surge naturalmente como consequência da Flanzine (revista). Isto acontece em 2014, numa provocação lançada por dois autores da Flanzine: Emanuel Amorim e Gonçalo Mira. Vivíamos tempos em que a ideia do colectivo parecia remar contra a maré. Essa inclinação serviu também para traçar o critério editorial da Flan de Tal que, na sua dimensão microscópica, precisava de uma personalidade que justificasse a sua existência. Mais do que ser diferentes, queríamos ocupar um espaço na edição independente que não estivesse já preenchido. Nesse sentido, a estreia com POEMANIFESTO (2014) marcou bem o para onde queremos ir — livros colectivos, isto é, com mais do que um autor. Em 2019, durante uma insónia, sou assaltado pela inesperada ideia da Tabela Periódica. Na manhã seguinte, entusiasmado, fui pesquisar sobre o assunto e descobri que naquele ano se comemoravam os 150 anos do seu estabelecimento no formato que conhecemos. Um sinal claríssimo que a coisa tinha pernas para andar. Desde logo soube que seria uma colecção de poesia, pois percebi que são dois universos muito próximos — o mistério que está na base de ambos e que nos leva à experiência, à procura essencial. O primeiro passo foi partilhar esta ideia com Luís Nobre, elemento fundamental na materialização das minhas ideias mais loucas, enquanto metade operativa da dupla lina&nando, responsável pelo design da Flan de Tal e Flanzine. O entusiasmo tornou-se, também ele, colectivo. E assim eclodiu. Depois, que autores convidar? Era só olhar para a lista dos mais de trezentos autores que já tinham colaborado com a Flanzine e escolher aqueles que gostaria de revelar de forma mais consistente. Assim surgiu um grupo inicial de cinco autores, E desse grupo, os dois primeiros livros: Tântalo, de Alberto Lins Caldas, poeta brasileiro residente em França, e Cloro, de Gabriela Gomes, poeta brasileira a viver em Portugal. Ambos a publicarem a sua primeira obra em Portugal. Como é realizada a escolha dos elementos químicos – autore/as? E qual o plano de publicação futuro? Dado o enorme desafio que é escrever a partir de um elemento químico, deixamos que a sua escolha seja da responsabilidade de cada autor. Os dez primeiros títulos estão aí. O próximo será Titânio, de Regina Guimarães, em Setembro. Irão seguir-se as participações de Renato Filipe Cardoso e José Pedro Moreira. Mas existem já outros elementos tomados por outros autores. A maior parte das vezes, somos nós a propor aos autores a sua participação, mas já fomos desafiados por alguns que se mostraram interessados em se juntar a esta aventura. A ciência também é cultura e forma parte do nosso quotidiano. Quer partilhar algumas das experiências do/as autore/as no processo de escrita desde o ponto de vista “elemental”? As fronteiras são uma questão basilar no mundo actual, não só as físicas e as consequentes guerras que provocam, mas também as do conhecimento. Se por um lado assistimos aos resultados da globalização promovida na segunda metade do século passado, por outro, observamos uma crescente fragmentação das várias dimensões existenciais. A ideia de especialidades e especialistas tende a empobrecer culturalmente essa experiência. Fomentar este encontro, diluindo distâncias entre Ciência e Poesia, é alargar as possibilidades do sentir e do pensar, e consequentemente do estar.**
17Cl Cloro – Gabriela Gomes REMEMBER WHEN WE SAW THE WORLD THROUGH CHLORIDE EYES lembro da piscina ter ficado vermelha do tempo em que não mais habitavámos a casa de verão, deixamos de ir e o cloro avermelhou tudo em sua volta como se tentasse nos lembrar de alguma maneira de que ainda estava vivo.*
b(ode) ao cloro ó khlorós! é este o teu nome grego. ó gás esverdeado! esverdeado como o brasil! ó cloro! querido cloro! és um dos elementos químicos tens o símbolo clarificado com um clarão de uma palavra clara e tens como o seu número atômico o número 17 ó cloro, o número 17 não te lembras de nada? ó cloro! és o 17 como o número do bolsonaro aquela capivara brasileira ó cloro! assim como ele também podes ser usado como uma arma tóxica, ó cloro! como ele te louvaria por saber que fostes utilizado como uma das principais armas da segunda guerra mundial! viva a guerra! viva o golpe! ó cloro! assim como ele também és acre, irritante e raro na terra ó cloro! e assim podes ser usado para o branqueamento e usos desinfectantes de tudo que está errado vamos limpar o brasil! vamos mudar isso aí! acabou a mamata! ó cloro, você também muda tudo por onde passa, enruga os dedos das pessoas como ele enruga as testas desde que se põe a escrever no twitter! ó cloro! também tens uma conta no twitter? também foges de debates!? ó cloro! tens a cor do brasil! estás abaixo do flúor e ao lado do enxofre! deves feder como eles! ó cloro. tu também tens o poder de destruir um país inteiro em apenas 3 meses. não é curioso que assim como ele você também ganha força na negatividade? nunca tinha visto alguém ebulir em um ambiente negativo, mas dizem as leis da química que sim, é possível, a – 33,97ºC ó cloro! um encontro de vocês os dois poderia ser letal à terra. notas sobre esposende investigação sobre casa de veraneio tio Jorge um pai que nada todos os dias a mesma hora na piscina a instituição casa de veraneio para uma família o que está guardado ainda nos quartos? porta retratos velhos de conchas, video games antigos, bonecas sem olho, o que habita uma casa de veraneio durante todo um ano quando não verão? quantas famílias ainda visitam suas casas de veraneio quantas venderam suas memórias sótão cozinha sala de jantar banheiros terraços Piscina e os olhos Cheios de cloro*
38Sr Estrôncio – Ricardo Tiago Moura voltando atrás no tempo ou no cálculo ou na página ou num intervalo de qualquer coisa que era inteira e com as devidas e científicas desculpas: o zero não existe o nada existe sim e importa muito mais que 0 com o devido perdão dos irmãos computadores e binários afins o 0 não é não há; excepto talvez quando Sr adormece abraçado a restos casuais de átomos calados entornados nos lençóis que não conhece talvez a sonhar com uma cor que ainda não há Sr crescia sentindo-se excêntrico detrito ou detrimento no seu curso de electrotecnia no seu fato cinzento-metálico de quase-senhor sozinho igual aos outros diferente de todos na vila (e até na grande Glaschu) Sr sente-se invisível humilhado não olhado como igual perdido num tubo de raios catódicos de uma televiseo repetindo talk shows concursos anúncios notícias que ninguém quer ver Sr é um reality show que ninguém quer vencer Sr passa o tempo a fazer rimas de substâncias de ontem partícula por partícula Sr também morre com o nome indicado a vermelho numa tabela (como qualquer um) esperança vazia de ser pó de estrelas como quando nasceu absoluto no princípio do princípio*
1H Hidrogénio – Maria Brás Ferreira Detonar o céu, dar à vida o riso desabrido, na certeza de o fim ser o triste começo da insónia. Em casa não estamos senão em regresso. Metemo-nos no carro e fugimos pela esquina que houver. Tornar a casa depois da morte é tão-só habitá-la de passado. * Ecologia Trata-se de comunicação por fios. A grandes distâncias. E não é por tanto que a viagem se não faz. A memória é o coração mais pequeno que uma mulher guarda no peito. E destruir a noite será sempre a vitória mais amarga da manhã. Creio que colapsaria se te desencontrasse, a boca seca expelindo fumos: vulcânicos ou viciosos, o silêncio tornar-se-ia ensurdecedor naquela maldade apalavrada de coragem. Daí que te subtraia ao mundo e te faça jorrar por entre a luz discreta do frio.**
Entrevista e selecção de poemas a cargo de Joana Magalhães, investigadora e comunicadora de ciência, doutorada em Bioquímica e Biologia Molecular pela Universidade Complutense de Madrid.More from Ciência
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