O outro dia prometi trazer ao blog uns pensamentos do historiador e crítico de arte Jacob Burckhardt com o propósito de esclarecer a ideia de cultura ou, polo menos, de reflectir sobre os condicionantes que delimitam o sentido desta palavra. Foi uma pequena casualidade o que me levou a trazê-lo a colação. Passeava polos cantões corunheses há pouco quando deparei no chão, à beira dum quiosque, um volumoso livro intitulado Historia de la cultura griega, de Jakob Burckhardt. Estranha ironia, pensei, a que nos oferece a sociedade contemporânea: os clássicos jazem aos pés de nós, ociosos citadinos, polo módico preço de 18 euros mas, quem dos que por aqui passam (e poderia ficar durante horas ali) conhece quem é Jacob Burckhardt, o admirado catedrático da universidade de Basileia? Para não desiludir-me, quiçá ,seria preferível continuar na ignorância. Senti, confesso-o, uma súbita emoção ao recordar a sua amizade com Nietzsche e como este sempre o considerou um grande mestre, sem variar nunca a sua opinião sobre ele (como sim acontecera, por certo, com Richard Wagner).
Burckhardt (1818-1897) entendeu a actividade do historiador fora das concepções mais academicistas do idealismo hegeliano assim como do historicismo. Defendeu a história como uma tarefa que tinha como objectivo o próprio aperfeiçoamento da pessoa, tentando-a compreender desde categorias que a percebiam como uma forma de modelação estranha ao conceito de progresso. Em certo sentido, e contra o historicismo, Burckhardt entende a função idiográfica, singular, da ciência histórica: percebe-a como a construcção de uma narração em que o próprio historiador se realiza como artista e, sobretudo, como a história não é uma questão do passado mas do presente, misteriosamente presente. Há toda uma raiz ética implicada que não pode substentar-se numa suposta objectividade baseada em simples “factos”. Suspeitamos que se decantaria em favor de Samuel Butler contra o determinismo de Henry Festin Jones. Diz Jones: “Nem Deus pode cambiar a história”. Responde Butler: “ Não, Jones, só os históriadores podem fazê-lo” .
Viu na própria sociedade industrial e na modernidade (e aqui com ambiguidades e paradoxos) um princípio de dissolução e destruição que não parecia resolver-se numa superação, como pretendiam todos os “optimistas” hegelianos, positivistas e , em geral, a ideologia decimonónica. Era duramente criticado polo facto de que não estava ao dia das últimas descobertas e discussões académicas da sua disciplina. Mas a sua obra A cultura do Renascimento na Itália é um modelo de estudo duma época, mantendo-se perfeitamente actual. Mas o que o traz aqui são algumas frases sobre o contexto no que se joga a compreensão da “nossa época”e a maneira de opor o nacionalismo alemão (e outros) ao sentido antigo da cultura. No contexto está também o problema do filisteísmo e o seu compromiso com o êxito fácil ao serviço de uma identidade nacional, que não precissa compreensão apurada e profunda mas consignas que elevem o orgulho e a auto-estima. Para um suiço como ele quando todos estavam de acordo em algo era o momento de apanhar distância e ver que se passava aí propriamente. Nunca viu como um bem para a cultura alemã a unificação forçada pelas necessidades modernas do Estado, nem um bem a vitória alemã contra França . E esta visão influirá decisivamente em Nietzsche, como veremos num futuro post.
Temos aqui algumas das suas reflexões.
Depois de se dedicar à política uns quatro anos, Burckhardt diz:
“Sobre a gente da minha índole não se podem construir os Estados. De aqui em diante, enquanto dure a minha vida, desejo ser um homem de bem, solícito para os semelhantes e boa pessoa privada… Não podo mudar o meu destino, e antes de que irrompa a barbárie universal (que me parece iminente), continuarei o meu aristocrático e deleitoso trabalho de cultura, para servir polo menos de algo o dia da inevitável restauração… Fora dos deveres inapeláveis, não quero mais experiências com o meu tempo, se não é o de salvaguardar quanto me seja dável o património da velha cultura europeia.”
O anti-estatalismo será também uma constante no pensamento de Nietzsche e a ideia de barbárie que maneja Burckhardt foi já utilizada por Goethe para referir-se aos alemães. A cultura prusiana, o Reich, quixo promocionar a Burckhardt a catedrático em Berlim, mas este declinou o convite. Preferiu a sua Suiça natal, um ambiente familiar e cívico onde um homem como ele podia dedicar-se a contemplar com distância o que considerava o início do “desastre” alemão:
“Desengane-se a triste nação alemã se sonha que asinha poderá arrimar o mosquete e dedicar-se às artes da paz e à felicidade. Os dous povos mais civilizados do Continente condenaram-se a abdicar da cultura. Muito do que interesava e deleitava aos homens em Julho de 1870 resultará indiferente em 1871” (no contexto da guerra franco-prusiana).
“Em vez da cultura, volta a estar sobre a mesa a simples existência. Por muitos anos, ao simples capricho do que se chamam melhoras responderá-se com a referência às imensas dores e perdas sofridas. O Estado voltará a assumir em grande parte a alta tutela sobre a cultura e mesmo a orientá-la novamente, em muitos aspectos, segundo os seus próprios gostos. E não está descartada a possibilidade de que ela mesma lhe pergunte ao Estado cómo quere que se oriente. Perante tudo, haverá que recordar à indústria e ao comércio, do modo mais cru e constante, que não são o fundamental na vida do homem. Talvez morrerá uma boa parte de toda essa folhagem luxuriosa da investigação e as publicações científicas, e também das artes; e o que sobreviva terá que impor-se um duplo esforço… Adjudicará-se ao Estado entre os seus deveres sem cessar crescentes, tudo aquilo que se crê ou se suspeita que não o fará por si só a sociedade. Tenho uma premonição que, ainda que pareça insensatez, não podo afastar da minha mente, e é que o Estado militar que se avizinha vai convertir-se numa grande fábrica. Essas hordas humanas dos grandes centros industriais não podem ficar abandonadas indefinidamente à sua fome e à sua codícia. Por força sobrevirá, se há lógica na história, um regime organizado para graduar a miséria, com uniformes e ascensos, em que cada dia comece e acabe ao toque do tambor”.
O dito acima foi exprimido 50 anos antes de Hitler e o III Reich. Quiçá para algo pode valer a história. E ainda:
“Há tempo que estou convencido de que mui pronto o mundo terá que escolher entre a democracia total ou um despotismo absoluto e violatório de todos os direitos. Tal despotismo não será exercido polas dinastias, excessivamente sensíveis e humanas ainda para esse extremo, mas polas chefias militares de pretendido cariz republicano. Verdade é que custa muito imaginar um mundo cujos directores prescindam totalmente do direito, o bem-estar, a ganhança lícita, o trabalho, a industria, o crédito, etc., e apliquem um regime alicerçado exclusivamente na força. Mas esta ralé de gente terá de vir parar ao poder, por efeito do actual sistema de concorrências e participações da massa na deliberação política” (13 de Abril de 1882).
“Democratas e proletários vão ficar submetidos a um terrível e crescente despotismo, ainda que se defendam com tremendos esforços, pois o nosso século não está chamado a realizar a verdadeira democracia”.
É necessário fazer comentários? Não é uma preclara visão do que foi o s. XX? Felizmente os homens melhoramos, não é?
Como curiosidade (mas provavelmente não casualidade) dizer que Titus Burckhardt, o estudoso da filosofia perene e tradicional, era o seu sobrinho-neto.
Bom , amigos, sabe-me a pouco mas vamos deixá-lo por aqui.
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