Sara F. Costa, por Vitorino Coragem
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Onde fica a Cidade Cinza da Sara F. Costa?
A Cidade Cinza é uma descrição de uma paisagem interior que surge quando estava a viver em Pequim. Contudo, não é, de forma alguma, um livro sobre Pequim nem sobre a China. É possível que haja elementos que se relacionam com o género da ficção científica, é possível que o leitor consiga, a partir dos elementos dados, erguer uma distopia política, uma cultura do isolamento social capitalista e um panóptico digital. Todos esses elementos podem também ser encontrados na China urbana contemporânea. Em relação ao impacto da minha vivência pessoal na minha criação, penso que toda a literatura deve ter uma distância razoável do seu autor, a cidade não é minha, enquanto escritora, ela surge ao longo de um processo criativo que, por vezes, nem consigo controlar. Por outro lado, nunca nego a relação autobiográfica da minha produção literária. Parece-me estranho que existam escritores que escrevem sobre coisas que não viveram. Para mim, a arte tem de ser visceral, tem de ter uma base real, tem de ser tão orgânica como quem a cria.
Fala dessa falta de controlo sobre a própria narrativa. No teu processo de escrita, as palavras fluem como se fossem uma torrente?
Até certo ponto, sim. Contudo, esse lado fluído, quase “fácil” e “prazeroso” no ato da escrita, só me surge se eu lhe tiver criado uma morada. Isto é, a escrita pode fluir dos meus dedos no momento de colocar as palavras no papel mas isso só acontece porque houve toda uma preparação que me conduziu a isso. Eu venho da escrita de poesia e não faria muito sentido vir agora aqui para a prosa a seguir templates pré-definidos de jornadas tradicionais de heróis. Sei que os há e que podem ser úteis, mas não são o tipo de recurso que me interessa, pelo menos neste momento.
Fala-nos um pouco mais dessa “preparação”.
Essa preparação relaciona-se com o que já disse anteriormente, ou seja, o lado visceral da criação tem de vir de um sítio profundamente interior, profundamente subjetivo, no sentido em que é único por ser meu mas é arte porque é capaz de comunicar. Não é um devaneio ao estilo de masturbação intelectual. Ainda que o possa classificar como romance experimental, isso não quer dizer que o livro não tenha um plano e uma estrutura. O que eu digo é que não se baseia em estruturas narrativas pré-determinadas, que são normalmente utilizadas para propósitos mais comerciais. Para mim, o livro começa a existir muito antes da primeira palavra ter sido escrita. Talvez por isso eu tenha optado por formular uma cidade, um ambiente, um mise-en-scène literário que enquadra tudo o que acontece ao longo do livro. Existe esse ambiente, essa qualidade estética e depois surgem as histórias, tudo aquilo que existe para ser contado. É preciso ter algo para contar. Algo que, por um lado, seja extremamente intrínseco e pessoal mas que, por outra, tenha conquistado a capacidade de comunicar. É como dar o nome a um sentimento que antes não existia. É sempre a esse ponto que eu quero chegar com a minha escrita.
Mencionas o facto de teres tido a intenção de escrever um romance experimental. Na apresentação do teu livro no Porto, a apresentadora Andrea Valencia falou um pouco dos géneros literários onde a obra se enquadra e mencionou géneros como o género do terror, da ficção climática e da literatura weird. Foi algo com que te preocupaste quando concebeste este livro, querias colocá-lo num género específico?
Não! De forma alguma! Tenho consciência que há descrições de situações bastante violentas, mas…
Uma mulher violada por guardas prisionais, por exemplo…
Sim, mas posso dizer que tentei ser fiel àquilo que eu acredito que seja um universo coerente, transposto ou traduzido num formato de criação livre, na criação de uma “realidade paralela” se assim lhe quiserem chamar, mas que tem representações com que podem perfeitamente ser identificadas com cenários reais que não são de outro mundo, são deste…
O mundo, ou pelo menos, o teu mundo, pertence ao género do terror…
Talvez! Lá está, essa foi uma descoberta curiosa. A personagem principal não atribui propriamente um julgamento às coisas que se passam à sua volta e às coisas que lhe acontecem. Ela não aprofunda os seus próprios sentimentos. Ela não se vê num cenário de terror. Ela vê-se apenas na vida “tal como ela é”. Ou seja, procurei que fosse, dentro do possível, uma personagem bastante vazia de intenção com uma ‘máscara branca’ como se diz no teatro. Preferi atribuir as sensações e intencionalidade ao próprio cenário… acho que o meu mundo é um mundo “construtivista”, talvez. Acredito que, em grande medida, a realidade é socialmente construída e temos muito pouco controlo/poder sobre o que se passa ou sobre o que nos acontece. Os elementos da nossa cultura, crenças, do que é percepcionado como “verdade” , são moldados através das relações sociais, económicas e políticas e não derivam apenas de propriedades objetivas do mundo.
Tendo em conta que a inspiração surge em Pequim, a capital de um estado ditatorial, podemos dizer que há uma relação entre a falta de poder político da população em relação às políticas do seu país e a forma como as personagens do teu livro são passivas perante todo o tipo de fenómenos absurdos que ocorrem?
Sim, acho que há algo desse género neste livro. No entanto, não acho que se aplique apenas a um caso particular de um estado ditatorial, acho que se aplica à realidade de uma forma mais alargada. Acredito que o capitalismo global está a cumprir bem a sua missão de nos deixar isolados e impotentes. Quem fala muito sobre isso é o Slavoj Žižek, recomendo a leitura. Ele analisa com muita profundidade como é que o capitalismo transitou de uma mera visão de política económica, para todo um sistema de dominação da realidade, o que deixa o indivíduo muito limitado naquilo que são as suas reais “escolhas”.
E é aí que a realidade passa a ser absurda…
Sim, a Andrea Valencia que fez uma incrível análise deste livro, menciona a certa altura que relacionou muitas partes do livro com o livro de contos do Júlio Cortázar, “Bestiário” e, particularmente, com o conto «Carta a una señorita en París». Nesse conto, há um homem que não consegue parar de vomitar coelhos. Este é um cenário absurdo que, quando levado ao extremo, passa da comédia para o terror. O mesmo como a Metamorfose de Kafka. Isto para dizer que há esta exploração do absurdo na Cidade Cinza. Não posso dizer que tenha sido intencional ou baseada nessas leituras, mas assim numa análise de um leitor que cria essa comparação, tenho de admitir que este livro pode acabar por se enquadrar nas tais categorias de terror, ficção científica, ficção climática e literatura weird. Mas não pensei particularmente nisto enquanto o escrevia.
Contudo, falaste em alguns nomes de autoras que estavas a ler quando tiveste a ideia para este livro…
Sim, a Can Xue descreve as suas narrativas como se de uma performance se tratassem, mais do que de literatura ou, pelo menos, de literatura isoladamente. Ela diz que ler os seus livros é como assistir a uma peça de dança contemporânea: como um gesto que se desenrola de Merce Cunningham ou Butoh (o seu favorito). A sua escrita é caracterizada por frases que evoluem para conclusões imprevisíveis e incisivas. As suas histórias sugerem frequentemente uma narrativa subjacente oculta — uma lógica de movimento que dita as ações dos intervenientes em cena.
Sem dúvida que gosto imenso deste formato. Ela é para mim uma inspiração, claro.
Fica assim a sugestão de leitura, depois da leitura do Cidade Cinza, claro!…
Claro! (Risos).
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NOTAS
Sinopse do livro: A Cidade Cinza acontece a quem nela vive. Nada pode ser feito em relação a isso. É nela que começamos a seguir a história de Maddy, vinda da Costa, agora nativa de Cinza. Maddy pouco sabe, na realidade, como veio ali parar. Armada com a coragem de quem procura as suas raízes, Maddy mergulha nesta urdidura urbana repleta de espelhos e sombras. A sua jornada é um trilho de descobertas e reencontros, um desafio aos limites na busca de laços familiares perdidos no tempo. Cf. Cidade Cinza, de Sara F. Costa, em Editora Labirinto (2024).
Sara F. Costa é escritora, tradutora, investigadora e professora do ensino superior. Viveu na China durante vários anos, entre Tianjin e Pequim. A sua poesia tem sido galardoada em vários certames nacionais e estrangeiros. Foi autora convidada de festivais literários por todo o mundo em países como Espanha, Polónia, Turquia, India ou China. Pertence atualmente à comissão gestora do coletivo internacional APWT (Asian-Pacific Writers and Translators). Possui uma extensa obra de poesia. “Cidade Cinza” é a sua primeira incursão na ficção.
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