INDIVÍDUO N. 3 (OU A FESTA DO VAZIO)
então retornas ao mesmo tema
que faz um homem entre demasiados homens,
existência entre existências refluindo sobre si
um homem, aberto ao tédio e aos desertos,
cujo ser, de tanto contemplar,
não imolou a própria vertigem
até o som da lira ou do asco crepitar
e a sua existência –
este incêndio da face destituída ao espelho,
tão breve como a pulsão da aurora
ao encontro da noite fria
as tardes não te darão nada, meu filho,
a não ser a hora demasiado tardia de caminhos esgotados
ou o fundo vazio de estações indivisas
que te convidam a morrer no azul
é inútil assim ir como permanecer
exaurido no homem antes de ti
mas, se vais, escolhe o longo caminho
fora dos portos conhecidos,
propícios aos naufrágios dentro de si
no limiar da noite esquiva, entre esquinas mal iluminadas de astros,
a chama ausente do satélite inundará o teu ser
com um chamado lúbrico para o abandono
na vasta planície onde cantam as sereias do nada
mas não te afogues em aporias
deixa que o sopro do absoluto –
isto que ainda tens de uma infância –
dê-te o fôlego, mas não a chave inútil
não há portas
todas as construções ruíram
mas sob a tua soleira – a do teu ser –
o vento continua a rugir
o vento – ou as vozes que conjuras
na festa do vazio
ODE À MANHÃ
a manhã levanta do horizonte
tenho vontade de escrever e a cabeça não dói
está nublado e chove um pouco como se
deus molhasse as pontas secas
do coração entrincheirado da véspera
ontem quando olhei o céu estrelado
só pude ver o vazio na cavidade do meu peito
mas a manhã veio como uma certeza e uma novidade
agora a água cessou, um hino se inicia
os pássaros dão glória e se lançam no azul
deus abre e fecha a sua obra
ou são os homens que esquecem a criação?
ao poeta cabe apanhar a luz do ser
e dar-lhe o cristal do nome, onde a imagem fulgura
e deixa-se permanecer como um estremecimento –
compete atentar para a anunciação,
os raios do sol quebrando numa geometria
concreta sobre a folhagem,
e deixar que a nossa alma se encha
de alegria ao crepúsculo, ao refluxo das águas
ou à chegada do sono após a exaustão
às vezes, lembramos nossos corpos imperfeitos
e sentimos exalar a tristeza da finitude
mas damos graças – ou deveríamos dar –
por ter acontecido de estarmos aqui
como um lampejo entre os dias e a noite,
entre um afeto e uma cicatriz,
entre Sêneca e Walser,
as flores do campo e o estio,
sendo por tudo tocados nesta alternância
e a tudo tocando
aconteceu de estarmos aqui,
neste instante fecundo,
salvo para sempre porque votado ao esquecimento e ao fim –
ao invés de vagarmos anonimamente e sem rumo
como a poeira eterna do universo
AS MEMÓRIAS INVISÍVEIS
caminhas pelas estradas polvorentas da tua memória
recebes o vento pelas costas
algum sopro veio do mediterrâneo e tem a secura do deserto
pessoas cruzam e desaparecem para nunca mais
estás sob o sol asfixiante de junho à esquina da Calle Evangelista
ou passeias no Luxemburgo sob um guarda-chuva chinês
foi este ano ou o passado ou uma década atrás
(agora já contas as décadas)
mas os nomes traem as coisas
falta-lhes o excesso a mancha a impureza
os nomes têm a textura derruída da ausência
e a sua lâmina, uma ponta cega encardida pelo tempo
a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
não é a Rua da Aurora no começo de uma tarde em agosto
é também o teu ser precário sobre o Capiberibe veloz
e os quadros e arcos das pontes na extensão do azul
sem os nomes as coisas dormem no lago universal
do esquecimento e misturando-se às águas e às algas
destituem-se pouco a pouco como as margens de um rio
tragadas pela correnteza
chamá-las porém não lhes devolveria a face
(vulto que se perdeu ao virar a esquina)
cada coisa porém guarda o seu secreto nome
sob a arquitetura inviolável de um momento extinto
a poesia é – talvez – a tentativa de construir
para esse nome – uma esfinge à luz do dia
NOTURNO N. 3
as nuvens estão baixas e cinzentas
como carvão queimado
a lua –
um pingente barato
ou, talvez, a coisa em si, satélite
não apareceu no firmamento
o céu está despovoado –
há no vento um presságio insignificante
quiçá, um barulho nos cômodos do apartamento
mas certamente não um chamado ou um embuste
tudo é excessivo para aquele que busca
colmatar as lacunas –
meu corpo está aberto como uma vala seca de rio,
exposta e indefesa aos vazios que a noite carrega
na transparência opaca das coisas
não chegaremos muito longe
todos os espelhos foram quebrados
desde o expurgo do último metafísico
nossos olhos piscam, confinados em arquiteturas
não virá a nave com que atravessaríamos
as veias escondidas deste breu
mas nunca se sabe a cadência dos meteoros
que podem riscar o céu
não esperes o fulgor de uma eternidade
de que não saberias o uso
a noite é este brilho interrompido –
para nós, que esperávamos a razão total
sob a glacialidade de uma estrela
mas é nesta noite – e não em outra maior
que nos cabe perceber a sua chama pura e inútil,
o seu afago tão largo como o vento,
ó morada transitória do sentido,
onde, por um momento apenas, nossos corações se acalentam
e depois se extraviam
MAIO 2018, NAS GRAÇAS
eu então sabia que a vida seria isto
enquanto descia a rua com meu cachorro
eu sabia que descia aquela rua no entardecer
da minha juventude, uma rua de mangueiras, jasmins e acácias,
em cuja esquina uma buganvília jorrava
em flor sobre os muros de uma casa,
renovando-me o gesto de calma contemplação
contra o meu espírito obstinado em velhas questões
seria isto –
passeios e intermitências, pensamentos engastados
em nomes e sínteses inúteis, mas no caminho não-raro
uma rua desaguava no céu polido de azul
ou uma lufada de vento fresco saciava o verão quase eterno
a cada manhã, logo cedo, os raios do sol ainda baixo,
perto do horizonte, iluminavam-me a face sem aquecer,
devolvendo a promessa dos dias como um sábado sem deveres
ou uma infância fora do tempo
seriam essas delicadezas inesperadas do cotidiano
e, por isto mesmo, esperadas sem ânsia e inquietude
seria isto e a consciência latejando como quem diz
estás viva e é isto ou nada
eu sabia que seria isto
a vida se consumando ininterruptamente
nos seus pedaços, sem uma borda ou um anteparo
de onde pudéssemos conservar intacta a memória
dos dias, sem a contaminação de tantos outros dias
perdidos na malha dos anos;
a vida se consumando sem o fulgor do bronze
ou de incêndios violentos, como uma perda gradual
que dá por si tarde demais
eu me despedia das quimeras, dos clarões duradouros de felicidade,
que pudessem alcançar todo o caminho
e ressignificar os fatos mais aleatórios, redimindo-os
em uma vida cheia de sentido –
as coisas ficavam para trás mais sutilmente
como o rastro de um barco no oceano
ou a fumaça de algum fósforo logo dissipada
talvez a mudança mais perceptível fosse o meu
rosto examinado atentamente, uma ou outra
marca que insistia em não abandonar,
a recuperação inexata da pele, que não fechava
as aberturas do tempo
por isto, por essas configurações que se perdiam
a todo instante, eu tinha de me deixar arrebatar
pela dignidade de cada coisa no mundo e iluminar-me
de sua presença, para que o sentido nascesse
dentro de mim como um voo de pássaro planando no azul
desprovido de direção, um voo que é todo voo
e não outra coisa ou desejo de ir ou retornar
um voo como um gesto vibrando no ar
no seu puro movimento
o sentido nasceria ao deixar-me existir
ao lado de cada coisa existente,
de que somos talvez apenas o mensageiro –
cada coisa –
as folhas do bambu vibrando sobre a mesa
o azul acima das antenas dos edifícios
exaurindo-se no fogo lento do horizonte
a hora escorrendo na boca da noite até encontrar o sono –
eu sabia que a vida seria isto ou qualquer outra coisa
escoando veloz dentro do tempo
veloz e volátil como o perfume das espadas de são jorge
numa noite ordinária de maio
e dentro desta noite meu coração batendo compassado
no meio de invisíveis destroços e nascimentos
até que o fluxo abandone o meu corpo
e paire acima, na copa das árvores, ondulando
no movimento eterno das massas de ar, indo e vindo
incessantemente, sem dar pela minha ausência
neste mundo
PREFIRO OS DIAS DE CHUVA
prefiro os dias de chuva
não obstante o eu esbarre na resistência
das coisas que estão aí fora e não dão passagem
os pragmáticos comprariam cigarros
eu imagino a sensação de um trago cálido
e a imagem é mais real que o ato em si
como a lembrança deste dia fundará outro dia maior
sim, prefiro os dias de chuva
posso ficar fundamentalmente só
estendendo a pouca roupa no varal ou aguando
as plantas da casa
os arranhões do mundo não escalavram
a ficha da existência dispensa carimbo
deito no chão frio
isto confere qualquer sentido à falta de sentido
como ter um guarda-chuva no exato momento
em que não tempestua e aranhas
monstruosas assomam no jardim
não pensei sobre o resto do dia
não, pensei e nada resolvi
sobre a longa tarde de sábado
ou um modo novo de evitar o aniquilamento
provocado pela passagem do tempo
porque as possibilidades se desgastam facilmente
no uso da existência
o recurso do sonho
o recurso do prazer
o recurso da indiferença
todos subterfúgios barrados na intrincadíssima peneira do real
mais real que qualquer realidade suposta
no entanto permanecer não é um recurso
é um imperativo de recusa à dissolução
na noite anônima e animal
porque o homem é a negação daquilo
que ele não é
cogito levantar do chão
se eu me agarrasse à aposta de Pascal
escolheria a existência de Deus
e momentaneamente teria um ganho infinito
mas o não-saber cai-me tão pesadamente
como uma fissura impede represar uma certeza
cuja única certeza é pôr-se eternamente em questão
como um homem é uma transitoriedade
no devir de todas as coisas
ah mas este momento e esta chuva
sim, esta chuva e este momento
nada os rouba mais de mim
TEIA
não há seguro contra o estar no mundo
nem tua casa te previne contra o assalto da existência
as janelas não impedem o vento e o cortejo de passos
de te trazerem signos do nada
o silêncio acusa que estás no centro de coisas
que não oferecem consolo porque apenas remetem a teu exílio
o expediente de levantar da poltrona e abrir a porta
da geladeira mede o intervalo de tempo gasto
e não sabes de que te serviria mais
teu olhar interroga paredes e detém-se numa lamparina
em vão um inseto debate-se contra o vidro
não há senão esta só e única realidade
à beira do Capiberibe ou do Nevá
JUVENTUDE
Teus amigos – alguns – mudaram de cidade
os teus irmãos já não moram
com teus pais
foram para o norte, o sudeste
para as Índias, talvez
Mas tu, fiel, ficaste
com o teu cachorro
tens tempo para o trabalho
para à tardinha à janela olhar detidamente
as gentes que passam
para a poesia – os livros
que nunca leste
Não precisas da economia do verbo
sempre podes falar sobre o tempo
(como são úmidos e quentes os dias do ano)
ou sobre o maldito governo
deste país miserável
com alguém no elevador
nas filas do mercado
– vai tudo muito caro
E quando o dia for muito belo
para as conversas pequenas e fáceis
restam-te os solilóquios
ou o sonho da espera
ainda tens muitos anos à frente
e a esperança, essa imprudente
te acompanha, oh jovem
Podes por um minuto
em tudo acreditar
para desacreditar logo depois
frustração após frustração
teus olhos têm um brilho inextinguível
Tudo está bem
mesmo as coisas fora de lugar
és jovem
podes o recurso extremo
dorme mais um pouco
MEU OFÍCIO
às cinco da tarde um som de apito no ar
anunciou à rua o vendedor de doce japonês
um outro – que inusitado – cruzou comigo
meia hora mais tarde no fim do passeio
em condições ordinárias não se cruza duas vezes
com vendedores de doce japonês
hoje é um dia ordinário cortado pelo maravilhamento
como todos os dias do ano
pela manhã quando atravessava para o cais no Bairro do Recife
as águas e os céus se dividiram em duas metades
de esplêndido azul
e meu coração fundeou à-toa
junto aos barquinhos do Capiberibe
no fim da tarde eu vestia minha camisa branca
bastante usada e rasgada e gostava de que pensassem
em mim alheia às coisas materiais deste mundo
não importa mas o homem é um ser
de grandes questionamentos – inclusive dos menores
meu trabalho consiste em redigir petições
como todos os demais
entanto meu ofício é deixar o coração aberto
permanentemente
o espanto não escolhe a hora de entrar
REITERAÇÕES SOBRE UM TEMA
o vento no canavial
as bandeirinhas de Volpi
os leões que Hokusai desenhou todos os dias
por 219 dias até morrer
a forma não se atinge nunca
na reiteração das coisas no tempo
as coisas – elas mesmas
são outras e tu
outro és
e o café as camisas brancas o assoalho da casa,
o qual pisaste e tornarás a pisar,
numa configuração nunca idêntica,
porque a madeira desbota e teus cabelos vão a cinza
viver – eis a fissura
é estar inacabado até o fim
**
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Procuradora do Município do Recife. Autora de Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017.