[lição para meninas espartilhadas]
Não gosto de bailarinas. Nem de actrizes. Nem de dísticos poéticos
de orelhas furadas, pálpebras escuras e lábios injectados a vermelho em
saltos altos; não gosto de decotes que imitam o ar marítimo, salvando
da deriva os olhares nocturnos de rapazes mais pequenos do que
redondilhas. Daquelas que usam das frases, das palavras, duplicando-
-lhes o(s) sentido(s), abusando tipograficamente desse movimento
literário de abre pernas que termina tão rapidamente como qualquer
ideia por elas sugerida. Não gosto da Alice, nem dessa ideia já tão
coçada da menina delirante que segue os desconhecidos até à toca:
tenham ou não pêlo branco e relógio na mão.
Não gosto de ouvir versos quase silenciosos em bocas pintadas,
ditos com a teatralidade mais empoeirada dos bordéis que, sem os ter
conhecido, sei que existiram por existir em mim a memória genética
de alguns homens que os frequentaram. E não é que não goste de
bordéis, de saias curtas, de homens devotos às teorias neurasténicas
do Egas Moniz a respeito da vida privada; mas o que é feito dos
bordéis à moda antiga, das meninas mal comportadas, dos homens
que as frequentavam, quando só se insinua uma ideia de desejo
entre parêntesis que, à falta de escrita, assume a aparência de olhares
indecorosos e de versos quase silenciosos? Não gosto de mulheres, de
raparigas Alice, que poetizam o espectro libertino de um desejo em
dísticos líricos que seguem todos os princípios da passerelle na medida
da anorexia das mãos.
E é verdade, se me disseres que não gosto de mulheres sugeridas,
como não gosto de redondilhas, de rimas encadeadas, nem de prosa
de coluna partida que se passe por poema. Pois é verdade que há
falta de mulheres de quem eu saiba gostar, e aquelas de quem gosto
não manuseiam vírgulas, quebram versos, andam de pontas ou suam
em público.
Nenhuma se chama Alice.
*
[domingo]
Sou só rapariga, de pernas estendidas, pés cruzados, buscando
a prova definitiva de que é nas paredes que se guardam os medos.
Perguntem -me pelo tecto, pelas portas e janelas e tudo saberei dizer
sobre elas. O meu quarto, ungido de Verão, é das tardes de domingo
como das sanguíneas, nascendo-me da sombra que cai com o dia sobre o chão.
Nada de cozinhas, embora lhes saiba a natureza violenta com que se
afogam em incêndios domésticos, todos eles calculados
pelos pensamentos que me habitam os gestos para além de mim. Cada parte
do meu corpo pensando-se, e eu, do cimo dele, interpretando as
diferentes linguagens que colocam à prova qualquer lógica. Nada sei
de mesa como nada sei de bem receber: se sou rapariga é só pelos pés.
De quando os descalço e me estico na alcova em desalinho. A minha
roupa conhece toda a ferocidade dos redemoinhos eléctricos embora
nada saiba de ferro. Desarranjada, dá-me este ar indisposto
de que preciso para que não me olhem mais do que à má sorte dos gatos pretos.
Rapariga só de pés pousados sobre a cabeceira da cama. Invertendo
a ordem ao mundo para que neles venham pousar apenas os pássaros
mais pequenos da minha infância; e, às vezes, se os vejo chegar, quase
juro que me trazem no bico o despontar das violetas, como se nada
mais fossem do que isso: peito floresta de idades passadas. E se me
pedes um beijo, sabe disto: sou só rapariga de pés e de passos floridos
no tempo em que já não se deve ter mais o trabalho de morrer.
*
[infâmia]
A vadiagem de sino na mão, garrafa cortada e olhos cegos, tronco
seco e polido com que bate compassivamente no chão, marcando
tempos aos olhares que se desviam ou se fixam nesta marcha de
miséria entre vagões no subterrâneo. De olhos fechados, cega vadia,
cão vadio, latindo língua de sino, a mais fiel Portuguesa de há não
sei quantos séculos: o que deveríamos ter por hino à glória de uma
nação enfileirada numa procissão de pernetas, manetas, cegos ou
cancerosos, pedintes ou calados. Aos que não se enfileiram: este vagão
é sala de espera, e sem que alguém saiba, carrilhão de pequeníssimos
gestos, vozes cruas que, no trajecto, curvarão cabeça, corpo e dedos,
baloiçando primaveras, verões inteiros entre as margens dos dentes,
sem pão que haja além destas palavras de cobre dando pressa ao vagar
de deus oculto em cada sinal de emergência. Trago ao peito medalha
de prata, sino encabeçado por três rostos de asas pequenas; tenho a
língua do ferro, e talvez por isso, talvez só por isso, saiba do cobre
e da diferença multicolor entre este e a ferrugem dos ponteiros que
ancoram passados à minha boca: o teu, o meu, o nosso. Sou vadia e o
mesmo é dizer que nasci do fundo do mar onde naufrágios sepultam
o progresso de outras vontades. Não tenho hino, glória ou fidelidade.
E se tenho por língua esta língua, é dela o toque, a vibração contra
a emergência de haver quem nos salve deste infame orgulho de
ser português.
*
3 poemas de Beatriz Hierro Lopes extraídos do livro [espartilho], uma edição Debout Sur l’Oeuf.