“Jesus disse:
Sem dúvida, os homens pensam
que vim lançar a paz sobre o mundo,
e não sabem
que vim lançar divisões sobre a terra,
fogo, espada, guerra.
Porque haverá cinco numa casa
e três estarão contra dous,
e dous contra três,
o pai contra o filho,
o filho contra o pai,
e manter-se-ão de pé, enquanto são unificados.”
Evangelho Gnóstico de São Tomé,
utilizado polos priscilianistas galegos.
Com duplo sentido titulo este texto, ao meio da presente polémica, aliás recorrente na história de Espanha e Portugal (ou seja da Hespanha, nome geográfico sinónimo da Ibéria até à idade moderna). Porque agora, como dantes, a guerra volta a ser entre as gentes deste urdume singular que os romanos chamaram assim, creio que por querer dizer Terra de Coelhos, ou qualquer cousa semelhante, que até isso parece muito discutido.
Ponha paz então, se algum poder tiver, minha mão, entre os insignes professores e escritores de quem eu tanto aprendi e o não menos ilustre José Saramago, que foste a Canárias por paz e saramagos te deram. Ponha paz, se alguém valorar o sentido da paz ainda, se alguém depois e ao meio de tantas guerras lembrar ainda que tão-só na paz se faz a cultura. E uma vez que o silêncio de canhões tão dignamente indignados reinar, por um momento talvez possamos escuitar que aqui ninguém, ao meu juízo, está a dizer qualquer barbaridade; mas todos, acho humildemente, estão parcialmente desinformados e, ouso julgar, polo menos parcialmente, bem-intencionados.
Quando no ano 1990 José Saramago tivo, humilde e amavelmente, a generosidade de conceder-nos a entrevista agora re-publicada pol’O Levantador de Minas, os três estudantes que a realizámos (Iolanda Aldrei, cuja correspondência epistolar com o escritor propiciou o encontro, Ângelo Brea e quem isto escreve) tivemos a ocasião de apercebermo-nos de que com respeito aos temas da Galiza o José Saramago tinha uma proximidade riscada de interesse e afecto, cumplicidade e, ao mesmo tempo, as lógicas lacunas dos intelectuais portugueses que em tal mérito incorrem. Aliás, o Saramago, conquanto se pronunciava em favor da soberania galega, insinuava que não era a sua vocação colocar-se em nenhum bando nas nossas guerras, precisamente por respeito à soberania dos próprios galegos. Creio sinceramente que ninguém deveria acusá-lo de traidor perante tal neutralidade, porquanto o Nóbel português não poupa esforços nem tem cancelas no falar, do meu ponto de vista, dos assuntos em que realmente se considera informado e envolvido.
Simplesmente, creio com humildade, o José Saramago não responde às expectativas sobre ele colocadas por diferentes grupos. Não obstante, e para além do que de boutade puder ter o seu comentário, e eu (ao contrário do que certo escritor galego) não acho que de brincadeira tiver tanto, e mesmo para além de quanto de ingenuidade ou de imperícia se puder registar no seu depoimento, o escritor ibérico formula um repto, do qual, polo menos, convém falar, e convém falar serenamente. O repto que enfrentamos perante o final de um ciclo: o dos nacionalismos. Sobretudo na península: o final do nacionalismo hispano-centralista, o final das concepções dezenovescas nos nacionalismos hispano-periféricos e, por que não, o final do nacionalismo português. É digno de um ensaio sobre a cegueira converter o instrumento em fim, e instrumentos, afinal temporais, são as nossas formas de estar no mundo, as nossas diferentes formas, nossas cascas afinal tão queridas. E resulta, claro, doloroso que alguém formule, que alguém insinue, que afinal podem ser abandonadas se na verdade convier, lenta e cuidadosamente, com o dó de rigor, mas sem maior apego.
Para surgir uma outra forma, filha do que fomos, valiosa e viva. Filha consciente do melhor de nós: de Dom Dinis e de Pedro Eanes Solaz, de Afonso, o Sábio, e de Averróis, de Ibn Arabi de Múrcia, de Camões, de Miguel de Cervantes, de Valle-Inclán, de Pedro Teixeira de Pascoaes. De Castelão.
Uma nova veste, assimesmo com data de caducidade, que servirá melhor às exigências de uma re-edição global das políticas orientadas à justiça social e ao crescimento sustentável.
É nesta realidade e ante estes reptos que devemos trabalhar coordenadamente. De início, no actual contexto de uma soberania partilhada entre todos os estados e, paulatinamente, nacionalidades da União Europeia. Num novo terreno, o da correcção do conceito de independência com o da interdependência, que juridicamente significa confederalismo. E, comoquer que o confederalismo admite federações interiores, numa correcta tradução em termos ibéricos desta doutrina, quis o galeguismo histórico propor que esta se desse entre os povos ibéricos, se tal federação servisse ao mútuo progresso. E aí é que estão as verdadeiras questões, seria positiva tal união para o progresso cultural e económico dos povos hispânicos? E, no contexto internacional, fortaleceria a situação de Portugal e de Espanha? Em termos internos da Espanha actual, não colaboraria a rematar o processo federalizador e a produzir uma maior coesão entre as nacionalidades, assente num clarificado státus de interdependência?
Examinemos agora a proposta no âmbito extra-comunitário. Com o escritor e economista José Luis Sampedro, e muitos outros, estou em que a globalização é necessária e inevitável, mas que deve ser acompanhada de mudanças políticas no sentido de uma maior coordenação entre os estados, bem como no de uma crescente submissão a organizações supra-estatais, munidas de uma estrutura democrática, que hão-de ser as únicas capazes de preencher o vácuo de poder em que vivemos, conseqüência do actual processo globalizador. Vácuo de poder que permite deslocalizações sem travas, compra de países, precariedade laboral e produção insustentável e anti-ecológica, entre outros males.
Para além disso, e num âmbito intermédio, está o especial, o único, papel que nas circunstâncias presentes podem desempenhar Portugal e Espanha, actuando conjuntamente, no contexto da próxima União Mediterrânea. Não há nenhum povo na Europa, se me permitirem a taxatividade, a não ser o ibérico, com melhor posição de partida face ao relacionamento com o mundo mediterrâneo islâmico e judeu. As nossas razões culturais e geopolíticas são já tópicas. Não obstante, o presidente da França já antecipou a iniciativa, armado de uma grandeur que aqui qualitativamente podíamos superar, de tomarmos consciência da nossa capacidade.
Se Saramago tivo de ser o involuntário profeta, tão-só deixai-me pedir, creio que por justiça e por economia energética, paz; cesse a inevitável chuva de pedras que os profetas involuntários invariavelmente acarretam. Será melhor assim, ao abrigo de desqualificações pessoais, porque um ataque ad hominem, se é que alguém se vir tão livre de pecado como para lançar a primeira pedra, desacredita fundamentalmente a quem o pratica. Será melhor mesmo porque os opostos, como dizia Cristo no evangelho citado, e repetia o sarraceno hespanhol Ibn Arabi, constroem quase sempre juntos, embora não sejam conscientes. E mesmo porque Saramago não é um profeta verdadeiro: apenas anuncia o que já está a cumprir-se.
Haja paz e trabalhemos para que o melhor dos futuros se desenvolva.
Pedro Casteleiro.
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