Passeio Nocturno
A gravilha pouco sabe da estrada,
do movimento de trás do vidro.
Firmo-a na distância da noite, no teu corpo nu,
para me aproximar dessa perda original
em que, como num qualquer fim-de-semana
atarefado, as carcaças ganham renovado vigor
pela planificação dos dias seguintes,
com os seus novos fatos de smoking.
Recuperam as horas pelo esquecimento,
a cinza da espera nos bolsos por abrir.
Os mesmos homens que criaram estas linhas
de ferro inventaram as mercadorias
e a moeda de troca,
o alcatrão sob o olhar atento dos faróis,
o reflexo como artefacto
do percurso, a viagem na geografia
dos mapas.
Se procurasse dizer-te que o teu corpo se move
na distância interior de um gesto,
decerto que, na certeza ponderada de um acto,
serrar-me-ias o trilho com os dentes.
*
Ouroboros em leite maria
A frase nunca mais me chega ao fim
Vai de peixe rabo na boca
Alonga-se de verso
Em verso
A sua linguagem contra o vento
Levanta nas palavras o crédito
Dos dias:
Debate-se na cana contra a eternidade
Vibra com a música das pálpebras
Salga, perece.
*
Calígula
Já a gravilha se esventrava
pelo silvo das estradas sem nome;
fora a vasta noite.
*
A “Home is so Sad”
Importa caber nos vestidos das casas,
a eles sempre voltamos.
Do later da memória, após o retrair das vasas,
o nome ressurge e reparamos
no ritmo do roubo, da noite às suas caças.
O lápis traça na ruína do tempo a palavra,
ronda o perímetro do linho
em busca de uma fenda pelo mar que lavra.
Vê aqui: os olhos prensados no caminho,
a água na panela e o azul amarrado. Este poço.
*
As mãos que fogem dos pássaros
fogem do frio.
Não há noite que não nos vista
de incenso.
*
**
André Osório nasceu em Lisboa no ano de 1998. É estudante do último ano de licenciatura de Estudos Portugueses, na Universidade Nova de Lisboa- Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e, apesar de ainda não ter publicado livro em nome próprio, tem poesia publicada em revistas literárias como a Folhas, Letras & Outros Ofícios (Aveiro), a edição online da Porridge Magazine (Londres), a revista Apócrifa e a revista Lote (Lisboa), da qual é um dos directores e fundadores.
Curadoria de Tiago Alves Costa.