Francesca Cricelli é poeta, tradutora e pesquisadora. Cresceu entre o Brasil, a Itália e a Malásia. Publicou os livros de poemas Repátria no Brasil e na Itália (Selo Demônio Negro, 2015 e Carta Canta, 2017) e 16 poemas + 1 nos EUA (edição de autora, 2017), na Islândia (Sagarana forlag, 2017) e na China (Museu Minsheng, 2018), além da plaquette As curvas negras da terra/Las curvas negras de la tierra (edição bilíngue, Nosotros Editorial, 2019). Suas crônicas de viagem e uma breve prosa de autoficção foram reunidas no livro Errância (Edições Macondo e Sagarana forlag, 2019). Participou de inúmeros festivais internacionais, entre eles a edição de 2019 de Printemps Littéraire Brésilien em Colônia e Zurique. Sua poesia já foi publicada em revistas como Época (Brasil) e Tímarit Máls og menningar (Islândia) e sua prosa nas revistas Ventana Latina (Reino Unido), Amarello (Brasil) e Chiricú (EUA) e no caderno Ilustríssima (Folha de São Paulo). Traduziu para editoras brasileiras escritoras italianas como Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016), Igiaba Scego (Nós, 2018), Claudia Durastanti (Todavia, 2021), Paola Masino (Instante, 2021) e Lisa Ginzburg (Nós, no prelo) e Fernando Pessoa para o italiano (Interno Poesia, 2021). É doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, em sua pesquisa descobriu um acervo inédito de cartas de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco, transcreveu e traduziu esse material. Atualmente vive em Reykjavík, a capital mais ao norte do mundo, na Islândia, onde estuda língua e literatura islandesa.
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3 POEMAS INÉDITOS PARA ANDRI BJARTUR
O DIA É PEQUENO
O dia é pequeno e a cada giro do sol
perdem-se cinco minutos de luz
da rua vê-se a casa, as janelas abobadadas
o vaso a costela de Adão
da janela, à meia-luz, vê-se a mãe
em seus braços o filho
em seus olhos azuis acinzentados o rosto da mãe
no rosto da mãe o sol da meia-noite
em pleno novembro
represado atrás de suas pupilas
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A LOBA
da loba não se tem notícias
por que teria se aproximado do Tibre,
para matar a sede?
ninguém levou água à loba
e assim sobreviveram os fundadores de Roma.
Cansada de amamentar seus lobinhos
saiu do santuário e desceu às margens do rio
de Rômulo e Remo conhecemos a linhagem
mas a história da origem é nebulosa
como toda origem é nebulosa
a mãe, Rea Silvia, fora estuprada por homem terreno,
diz Tito Lívio, não seduzida pelo deus da guerra,
talvez pelo próprio tio.
Após dar à luz os gêmeos foi morta ou encarcerada
há controvérsias, talvez enterrada viva por descumprir o voto de castidade
nunca se sabe ao certo
como morre uma mulher
nem na fundação de Roma, nem agora.
A loba, anônima, vive imortalizada no bronze
em latim as palavras lupæ meretrices ambulatrices fornicatrices
indicavam o mesmo ofício
mas também noctilucæ
luz noturna
vaga-lume
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PRECE A AUÐUMBLA 1
Auðumbla das divinas tetas
deusa primeva dessa latitude
que seus quatro rios de leite
abençoem os meus córregos
que nunca me falte a fonte
na curva noturna entre os
os meus bicos e os lábios dele.
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1 Na mitologia nórdica, Auðhumbla era a vaca alimentadora, a Mãe Terra. Amamentou o deus Ímer e lambendo o sal do gelo desenterrou e deu vida a Búri.
3 POEMAS DO LIVRO INÉDITO INVENTÁRIO DE ÉBANO
PERCEBES
Ese sabor a sal na boca
Como se a morte viñese cada nove ondas
[Paco Souto, Furtivos]
são furtivos
os crustáceos que nascem na costa da Galícia
dizem que já habitaram a China
por lá chamavam-se dedos do diabo
percebes
sua pesca é da ordem das coisas arriscadas
desincrustá-los requer agilidade e destemor
fugir às ondas
ao choque mortal do mar sobre a pedra
mas percebes
se alojam onde as ondas mais quebram
colher a vida
à beira da morte
no meio do mar
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AS CURVAS NEGRAS DA TERRA
Nesta madrugada arderam
como a muralha chinesa incendiada de lume
as montanhas da Galícia;
o dorso do dragão em chamas
esteve à espera de um São Jorge aquático que nunca chegou.
Era uma serpente de lava a subir e descer
as curvas negras da terra entre Allariz e Redondela.
Daqui, da ilha de São Simão, ainda
envolvida na bruma tóxica,
sonho a fecundidade do nosso futuro.
A novidade da morte percorre-te
a espinha, brasa gélida
converte-se em pranto mudo o medo
às margens do porto azul dos teus olhos.
Desfaz-se a memória, água adentro.
Tememos a falta do que habitaria o porvir
e então traduzes o que quase sei numa língua desconhecida.
Chove e não posso caminhar à beira-mar
para colher-te o olhar daquela margarida,
Cristo branco, erguida sobre estas pedras centenárias
flor dilatada ao vento com olhar de súplica ao céu
igual os meus pulsos quando, em meu sono, os sorves.
[Ilha de São Simão, Galícia, outubro 2017]
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MURMÚRIO DO BRANCO
[sobre um desenho da cidade de Krumau de Egon Schiele]
Chove sobre as cores,
é um autorretrato
o emaranhado do ocre com laranja
uma lança que perfura o olho divino da falta.
Colore a densidade populacional nos mapas, o ocre,
mas as casas andam vazias
e estamos nus em frente às coisas vivas[1]
No murmúrio do branco está o caminho do carvão
e eu persigo as linhas com os dedos
firmes sobre as janelas e as tuas costelas.
As casas andam desabitadas de ti
e da desordem vital
que confere têmpera à luz oblíqua da tarde.
Não há sismo
e os jardins são todos internos
os desertos todos interiores e anteriores,
resistem ao regar das horas
resistem
ao esmiuçar com os dedos os pastéis a óleo sobre a folha de papel.
Arden las pérdidas[2]
como na praia as labaredas vulcânicas sob a lua cheia de Reykjavík
e aporta
aporta aporta também o esquecimento
esta velha casa.
[1] Um verso de “as imagens transbordam”de Sophia de Mello Breyner Andresen | “Dia do mar”, pág. 63, Edições Ática, 1974
[2] Título do livro de Atonio Gamoneda.