primeiro: o coração
primeiro: o coração. se calhar dois (um para quando se morre outro para
a espera do milagre)
e o teu sorriso icónico
já perto de desaparecer:
há coisas que só depois percebemos que devíamos
ter roubado –
e mais tarde o que me
fica nas mãos,
demasiado íntimo
para carregar comigo enquanto faço as rotinas
na loja do costume e perguntam
como vai? e sei por
dentro que o teu sexo me ficou no cheiro,
por isso sorrio e genuinamente
respondo que
muito bem, cá se vai
andando
e sorrio de novo
no meu corpo o teu rasto
o arrepio de só há pouco
teres saído:
volta, estou tão perto
(se todas as noites me visitasses seria tão fácil morrer)
enquanto por dentro falo
calada
a dizer tanto
e o corpo, o corpo e o sorriso
que não voltei a ver,
o sexo
a namorada que guardas na gaveta
lá de casa quando apareço: mas primeiro sorrio primeiro faço as compras
da loja
do costume sorrio de novo
os morangos estão fora de época
o teu sexo numa estufa
as laranjas enormes,
com uma cor de encher
os olhos, mas primeiro,
o coração.
primeiro: o coração.
Do Cassiopeia, pela Apuro, 2017
*
ao poeta que me envia árias avulsas
andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto, serão a maior carta de amor no
teu correio, ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos agarra-te ao boletim de voto e às
revisões constitucionais mas só se te deixarem sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.
Do Cassiopeia, pela Apuro, 2017
*
apartamento
se perguntarem o que sobrou digo que já levaram portas as janelas o escândalo
levaram até o cesto de pão a inocência o jarro de alfazemas secas
no hall de entrada, ficaram as raízes
deste apartamento sem vergonha
et tout le temps qui rest: entra, é um convite; perdoa há muito não limparem
os pés ao entrar, talvez me tenha eu
esquecido de pedir ou começado a gostar
desta coisa de ser suja, não sei,
mas estas paredes
(rabiscos adolescentes
antigamente sentados em
manifestações mais políticas)
são os turcos com lutas de cães
em alexanderplatz, são pokhara, um hotel laranja decadente e o inglês que
não voltaria
a ver, são tudo isso mais as peixeiras,
estátuas de vénus passeando na foz velha
a celulite majestosamente texturada
e a areia-carvão naquela praia
açoriana que mais tarde repudiaria;
estas paredes são os amantes e
todas as tragédias gregas,
pratos marcados a giz desenhando
rotas de colisão indiscreta, tudo isso
o que fui e o que não quero
voltar a ser à custa de não poder.
sobrará no fim a medida exacta
do que divide as paredes que aqui vês
solidamente entregues
ao hábito de nem os ossos
deixar no prato. entra, é um convite; mas à saída leva-te contigo:
aqui só eu não sou de passagem.
Do Photoautomat, pela Enfermaria 6, 2018
*
atlas
parada nos semáforos
a minha mãe fumava
estacionada ao fundo das memórias o último cigarro que a vi fumar ainda
me recordo
a outra mãe
estaria perto de morrer
e a minha
fumava
com a angst de quem foi
menos amada do que o merecido mesmo assim carregava as queixas fraldas contas
o peso transladado degrau a degrau
o olhar dela inolvidável
naquele espelho de retrovisor
(só uma matriarca saberia
enterrar outra)
minha mãe-atlas
eu via
e não sabia ainda nada
sobre mitologia grega
mas um dia vais entender
ela repetia
e só quando anteontem
me sugaram pelo umbigo
qualquer dose de indizível
(dói sempre quando decides
tirar algo enroscado na carne)
fazia um tornado em berlin
eu tinha saído na mesma à rua
e chorava agora para dentro
naquela maca improvisada
a christina dizia, o corpo tem memória
e é do umbigo que vem
a saudade do ventre
as árvores caíam lá fora
raízes monstras inteiras sugadas
do chão e a minha mãe
a dois mil e oitenta e quatro
cigarros fumados
naquele renault clio bordeaux
no ano de mil novecentos e noventa e oito quando eu não sabia ainda
de mitologia ou que a mãe
deixaria de fumar pouco mais tarde
eu ainda não sabia
da vénus de milo da carla
desenhada a sangue menstrual ou da
mulher turca abraçando o filho asmático
na piscina pública de kreuzberg
mas podia adivinhar já
alguns semáforos ininterruptos
a memória do umbigo, esta solidão hereditária: cromossoma X.
Do Photoautomat, pela Enfermaria 6, 2018
*
Outros:
4:40
comportamento errante
foi por isso que ele a deixou
comportamento errante
e hoje aqui estamos
4:40
num bar onde as casas de banho
se transformam numa espécie de
casa de fados em cocaína
eu só bebo
mas ainda assim
inegável
a beleza destes microclimas:
fados no wc espelhado
de um club onde só passam techno
o saxofonista de jazz
apanhado a dançar
diz que gosta
esta repetição em loop
de alguma forma
recorda-lhe coltrane
hoje vim aqui
à procura de alguém
que não estava
mas há o nietzsche, ele
escreveu qualquer coisa
sobre o desejo da
necessidade a necessidade
do desejo (demasiado tarde
para o citar em condições)
nos fados é obrigatório o desalento
e por isso a elaine dizia
98% dos dias não sei o que faço aqui
a sara dizia
a mim só me apetece chorar
e ela não falava da nostalgia do fado
de beber demasiado e tudo junto
referia-se sim a uma cicuta diária
essa espécie de vazio inconsequente
e por isso
interminável.
teimosamente fingindo
saber o meu lugar no mundo
ignorante de bençãos coroada de
amores sádicos mas tentando
recuperar as tropas
eu agarrava o copo e
explicava, ainda que
pisando armadilhas,
falhamos mas estamos aqui
falhamos mas olha para nós
tantos gatilhos
que nunca chegámos a apertar
isso só pode ser
uma vitória
uma meta
que nunca ninguém anunciou
quem eu queria
não apareceu
mas olha só
estou em casa sã
estou em casa salva
e afinal
não é o amor que resgata
sou eu
e o táxi que conseguiu aparecer
apesar da chuva torrencial
falta dizer o que ninguém diz
destas mulheres
é que a solidão é o preço
a pagar pela resistência:
a errância
está no adn
como língua nativa
(será sempre a primeira resposta
e ligação neuronal)
às vezes seria mais fácil
aprender a brincar às donas de casa
ignorar o patriarca debaixo do tapete
e os anelares encontrados
debaixo da ponte
mas é mais difícil
matar um potro
que não foge em sentido único
e desse ponto de vista
o que nos mata
será também a única salvação.
sabes, o que não se diz
nunca sobre a errância
é que quando se diz errância
diz-se sobre tudo:
liberdade.
*
o osso invisível
maria & manel
casal anónimo
tão português
almoçam no tasco
ao lado do tribunal
a culpa do arguido
(ouvia-se)
situa-se na mediania
a ilicitude
(dizia-se)
não é elevada
maria & manel
comentam
enquanto comem
que a carne não é tenra
que a carne
podia defender-se melhor
do carniceiro
que a carne não devia
custar-lhes tanto a mastigar
e que a carne tem culpa
de ser mastigada
se não acorda
enquanto é engolida
maria & manel
estão então satisfeitos
limpam a boca
à toalha da mesa
e prosseguem o dia
ignorando o osso
que discretamente desce
depois da deglutição
prosseguem o dia
e coitados
não sabem que morrer
vem às vezes dos pequenos gestos
o ódio instalado no sofá
no sufoco da notícia de jornal
a mão suja que quis entrar
sem ser convidada
o ossinho invisível
que devagar
se vai instalando
na garganta
prosseguem o dia
e coitados
não sabem que a culpa
nem sempre se vê
e mesmo que se visse
há quem diga que o frango
não só mostrou pelo sucedido
um enorme constrangimento
como na vida um escassíssimo
pendor para a reincidência
e maria & manel,
sejamos honestos:
dado o apetite largo
com que lamberam os dedos
à refeição
só poderiam estar a pedir
invocação de sedução mútua
e um osso
fino frágil
aguçado
– atravessando perpendicularmente
essas laringes
ao meio dia.
*
a faca de vénus
neste museu de vénus exportadas
sou figura barroca tatuada
sabe bem que paguem para ver
mas antes que me sinta emancipada
o vendedor avisa:
o prazer pertence apenas
ao consumidor final
o corpo é o teu capital
lipoaspiração invasiva não invasiva
como apagar estrias vermelhas
o capital é o teu corpo
e o custo também.
querido, não serei a tua vénus de willendorf
não sou coreto de praça
ou quiosque de jornais
dispenso licença para ocupar
o espaço público e
recuso-me a perder
vinte e seis mil anos de fôlego
à espera que as feministas
me desenterrem. na rua
uma mulher deita-se de lado
mata a comichão ao longo do flanco
com uma faca:
ela sorri.
*
aqui se faz a carne
emociona-me o
slogan caindo como verso bíblico:
aqui se faz a carne
que se desfaz
a carne dos que morreram antes
de conhecer os seus poetas
dos poetas que morreriam antes
dos seus poemas,
este poema não é dos poetas:
pertence à promiscuidade
dos piores dias, ao resto da vergonha
que alguém encontra apodrecida
anos mais tarde atrás do sofá
é a palavra que ia ser dita
mas foi demitida por nunca chegar
a horas: fica
mais uma noite
talvez chegue a amar
os teus primeiros cabelos brancos,
nunca me chegaste a contar
a história do dente partido
este poema sufoca
todas as palavras que derivam
do latim para ultimamente
dizer a palavra paixão,
não cabe no bolso ou na rotina
é a etiqueta do vestido
de baile que deixa a ferida
mais funda o álcool nocturno
para esconder as insónias
o victor já dizia
que a roupa dos poetas
parece sempre velha
mas isso é só a idade dos sonhos
ganhando bolor na gaveta
ou o modo estacionário de morrer
este poema é o cocktail-angústia
com talo de aipo,
o último verso que
sai a galope
pelas mãos do poeta medíocre
a caminho da tabacaria,
que apesar da raiva
da solidão estrutural
de um primeiro verso,
persegue a palavra até ao
último fôlego,
o poeta corre
a maratona cego manco
triste muito
triste só para trazer
à vida um último verso que
não enlouqueça. mudo
estropiado asmático
mordendo para sempre
rostos que o atormentarão
o último verso ignora o esteves
que acena à saída
e é abandonado
na pista de corrida
porque o estafeta se esquece
sempre de chorar
aqui se faz
o verso que não depende da carne:
essa que se desfaça
na sala de cinema vazia
enquanto passa o genérico
em pano negro com todos os
nomes impossíveis:
a cicuta diária das palavras
é ainda a única
forma de hidratação
e não importa perder em tudo
ou não chegar nunca a conhecer
os primeiros cabelos brancos,
quando o estafeta
abandona o testemunho
a meio da pista
só o verso afinal
precisa
de sobreviver.
*
**
Francisca Camelo nasceu no Porto em 1990. É co-fundadora d’A Bacana, contribuidora regular da Enfermeira 6, tem poemas espalhados nas revistas Flanzine, Gueto, Tlön, Nervo, Três três, na zine MAIS PORNÔ, PFVR, nas Antologias Caderno 5: os pastéis de nata ali não valem uma beata, Lluvia oblicua – Poesía portuguesa actual e no Poemanifesto 2.0.18, entre outros. Publicou os livros Cassiopeia (Apuro Edições, 2018) e Photoautomat (Enfermaria 6, 2019).
Curadoria de Tiago Alves Costa.