Meti a poeta na jaula
como macaca brava de circo
rosnava assustadoramente
faminta e incontornável
poetas devem ser sublimes
não feias, vulgares, mondrongas
poeta é tênue, intocável
não disforme, buguio, cacajao
Vez por outra escapava
pra me encher de culpa pelo poema
que não paga as contas do mercado
a comunista me viu acabrunhada
Reclamou:
— Você é poeta. O demônio tem medo
da poesia!
Taí a função da poeta primata
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Pedaço meio luz
parte meio arte
tudo meio beleza
enfeitada de sorte
corpo todo torto
tudo despencou
pedaço de escuro
Coração que pousa
no marfim elefante
dribla a morte
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Disseram quando nasci nem chorei
gritei como hiena e pequena
já a postos com escudo e armadura
a me proteger de você à minha frente
cá prostrada de peito pro alto
esqueci o formato das nuvens
ouço dos pássaros as ultimas histórias
débeis sobre dribles em gatos
fui percebida e quase desviei do coice
do céu faustoso mas não foi possível hoje
demente segui com as marcas da pata
celeste na caixa torácica duas ferraduras
do lado esquerdo do peito
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Língua solta da boca
risca o chão faca afiada
meu próprio inferno
mora em meu corpo
gastura organismo que treme
involuntariamente
onde todo mundo é alguém
e você continua não ser todo
mundo; os outros são somente
onde eu gostaria de morar
pra não ter que morar em mim
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Dormem os cumes das montanhas de Álcman
e lá os macacos e saguins; dorme a esfinge
de Gizé as lembranças de paz as mulheres
deprimidas e exaustas seus filhos raquíticos
os homens bêbados de testa nas mesas das
tabernas e as prostitutas entorpecidas das
suas camas insalubres. Dormem os rios em
seu leito, a foz que não desagua, os abissais
nas profundezas, serpentes de todas espécimes
humanas dormem nas árvores que também cochilam
aproveitando o vendo da tarde; dormem como
crianças batedores de panela e dormem também
as crianças, porque essas devem mesmo dormir.
Dorme mais ainda a revolução e dormem todos
os outros à rivotril ou prozac; menos o poeta
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
No dia que ela foi apagada
disseram-me passional
disseram-lhe passional
disseram ao crime, passional
e disseram passional também
às balas que perfuraram-lhe
o crânio
pelas costas
de joelhos
Disseram que por amor, ou zelo
isso adoeceu meus passos
meus caminhos e minha caneta
que desenhou por anos todo
dia a mesma barata morta
pela impressão aborrecida de
quando se referem a ela
fazem parecer que acidentalmente
caiu com a cabeça na calçada;
fatalidade
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Não passei fome e me compadeço
em meu privilégio não cortei cana
menina nem andei quilômetros a
pata ou boleia até a escola
Não sou tão rasa que não
se possa tirar proveito nem
tão sabida que se oriente imitar
falta-me chão de pedra e doem
demasiadamente pouco
os calos nos caminhos sob o
rubro céu que vivo; mas
sinto o peso abrupto de quem
vejo não eleito escolho sua trilha
arrasto consigo sua caçamba
Apunho da menina esse facão
e dele extraio pra ela seu trabalho
e sua doçura; não há poesia
sem dividir este peso
in Pés Pequenos pra Tanto Corpo
*
Uma bandeira tremulou uma mulher
que andou o oásis inteiro no seu rastro
Uma mulher atravessou um deserto
a cuspir na boca do seu filho com sede
lá encontrou outras mulheres cuja
sede é o motivo das travessias
Uma criança com sede carregou uma
mulher no seu lombo até que
pudesse ela chegar ao outro lado
do deserto em segurança desta vez
Uma mulher arrasta nas pernas
uma bandeira, uma criança, um deserto
inédito
*
**
Manuella Bezerra de Melo, nascida no Recife, Manuella é jornalista e escritora. Trabalhou como repórter, produtora, redatora, foi de ativista à dona de cafeteria, mas largou tudo porque faz mais sentido largar que segurar. A única coisa que leva na sacola é o Rio Capibaribe. Escreve nas horas vagas e quando atenção permite espasmos, poemas, crônicas e contos infantis. Viveu no Brasil, na Argentina virou aldeã, hoje está em Portugal. Morou em Braga, atualmente reside em Guimarães, amanhã é outro dia. Está na antologia Pedaladas Poéticas (Aquarela Brasileira, 2017), publicou Desanônima (Autografia, 2017) e Existem Sonhos na Rua Amarela (Multifoco, 2018). Dedica-se a um mestrado de Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas da Universidade do Minho (Uminho).
Curadoria de Tiago Alves Costa.