a) Sinuosas são as linhas por onde se cosem os argumentos cinematográficos. Especialmente os portugueses. Que, de tão elaborados, destroem a paciência do cinéfilo mais intrépido. Mas o cinema de hoje é imbecil. Muito movimento e pouco argumento. É só meia bola e força. Tudo se baseia nos actores. Mas os actores são quase todos iguais, isto para não dizer todos. Todos e mais alguns. E é nos alguns que a porca torce o rabo. b) Um dia vi um filme com uma porca e já me esqueci da história. Doutra vez vi um filme com um anão. Só me lembro do anão. E mal. Também me recordo de ter visto um filme sobre uns emigrantes magrebinos em França que comiam um pão tipo cacete com chouriço junto a um camião do lixo. Não me lembro de mais nada porque depois adormeci. O filme era do Godard. Também me lembro de outro filme onde um jovem francês bebia ar com a ajuda duma colher no meio do campo, depois não me lembro de mais nada porque adormeci. O filme era do Godard. Lembro-me, ainda, de um outro onde um jovem casal falava através dos títulos dos livros e não me lembro de mais nada porque adormeci a meio. O filme era do Godard. Recordo-me de ir ver mais alguns filmes do Godard mas desses não me lembro mesmo de nadinha. Só de acordar no fim do filme. c) Está claro que o problema não estava na falta de qualidade dos filmes do realizador francês. O problema residia na minha falta de cultura cinéfila. Pois não percebia as metáforas, os planos, os diálogos, a montagem, as insinuações, a linguagem revolucionária, nem percebia o francês, que para mim sempre foi uma linguagem de donos de gatos persas que gostam de sair à noite com alguns rapazes. O povo detesta os filmes do Godard. Os intelectuais adoram-nos. Não sei, é se os conseguem ver sem adormecer. d) O povo é muito leal nos seus gostos. Os intelectuais não. Os intelectuais são bons rapazes, ou raparigas, mas é gente que gosta de se sentir mal com o bem dos outros. Adoram dizer que gostam de coisas chatas e complicadas. Não apreciam coisas simples. Gostam do povo vertido em dialecto epilogado. Gostam do povo mas detestam tudo o que ele faz, o que ele come, o que ele veste, o que ele lê. Abominam a música e adoram ruído. e) Os intelectuais são demais, mas, por outro lado, nunca são demais. Em Portugal até são de menos. Mas eu gosto muito deles. E também gosto do povo. E de música popular, fado, marchas, folclore. Adoro caldo verde e chouriço. E pão saloio. E camisolas do Figo. E bandeiras de Portugal e braceletes de Portugal e pines de Portugal e cachecóis de Portugal e de lenços de Portugal e relógios da selecção de Portugal e também gosto de Portugal, propriamente dito. E de sardinhas assadas e de febras assadas e de linguiças assadas e de alheiras assadas e de camisolas do Deco e do Figo e do Pauleta e do Simão Sabrosa. E de Portugal e da nossa selecção. E da nossa querida bandeira das quinas. E de figos e de maçãs e de laranjas e melões e melancias e de peras e tangerinas e da camisola do Maniche e da do Figo e da do Deco e da do Ricardo e da do Figo novamente, porque nunca é demais. E da bandeira de Portugal e da camisola da selecção de Portugal. E de Portugal, propriamente dito, também gosto muito. E de sopa de chícharros com couves e de creme de cenoura e de arroz de tomate com carapaus fritos. E gosto muito dos calções com o número 7 do Figo. E dos cachecóis da selecção e das bandeiras de Portugal. f) Viva Portugal, propriamente dito. Viva a bandeira portuguesa que agora está em toda a parte.
Viva a selecção portuguesa. Viva o bacalhau. Viva tudo o que é nosso. Viva Timor-Leste, que é bem o espelho da sua Pátria-Mãe. Viva tudo o que pode viver. E viva outra vez. E outra. E outra. E outra. E outra ainda. Golo. Golo. Golo e outra vez golo. E mais um golo e outro e outro e outro. E mais uma bandeira e mais um golo e mais uma camisola do Figo e o caldo verde e tudo e tudo e tudo. Viva tudo e mais alguma coisa.
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