A João e Mário
Atribui-se ao rei Salomão aquele exemplar juízo pelo qual, ante difícil dilema, é outorgada a custódia de um menino à mãe que estava disposta a perdê-lo antes de o ver morto -em troca de àquela que o queria mesmo aos bocados. Estas dicotomias apresentam-se com excessiva frequência quando tratamos juridicamente com o sentimento do amor à pátria, pulso legítmo e pábulo de guerras conceptuais (e infelizmente de outros tipos). E, como diz o jurista galego e mestre Bernardo Sánchez Pavón, sem uma prévia delimitação, mais ou menos exacta, daquilo que de substantivo se pretende que haja [nos conceitos, arremessados de bando a bando]. Tentarei delimitar pois alguns conceitos, sob a intensa luz de um dos nossos lúcidos avós, paradoxal e eficazmente contemporâneo.
Há uns meses encerrou-se na Andaluzia o congresso dedicado a quem consideramos hoje como um dos pais da Economia moderna, o tunesino de origem andaluza Ibn Khaldun -coicidindo com o sexto centenário da sua morte. Vulto sobressaliente também no terreno jurídico, Ibn Khaldun (1332-1406) foi testemunha directa dos acontecimentos políticos nos últimos reinos de Taifas. Para ele o alicerce do Estado acha-se –conforme assinala o politólogo Jean Touchard– ante tudo no espírito de corpo de um clã, de uma tribo, de um povo. Sem o espírito de corpo que anima um povo não é possível estabelecer-se o Estado. Os valores ideológicos ou religiosos que impregnarem o Califado, o Estado, vêm depois e funcionam como elemento coesionador ad extra do corpo social. Portanto, para Ibn Khaldun, o Estado é instituído, com o apoio do povo, para servir ao bem geral. Nunca ao contrário.
À luz da sua obra, parece claro que se considerarmos que o bem jurídico superior for a permanência de uma qualquer estrutura estatal, como imperativo categórico, mesmo contra a vontade dos governados, estaríamos a preterir o fim supremo do Estado, que é precisamente o de servir às necessidades e à vontade do corpo social, regularmente manifestas e expressas. O bem jurídico-público prioritário, para Ibn Khaldun, era pois o de servir a uma realidade prévia e soberana que é a do povo, e à garantia desse bem estão orientadas as estruturas do Estado, colocado sob a vigilância da sociedade.
Mas, se me permitirem, quereria deprender outras aplicações práticas da lição de Ibn Khaldun. Julgo que para ele a nação é –mais do que qualquer outra cousa- em última instância extensão do núcleo familiar. E da vontade popular depende a estrutura e a legitimidade do Estado, que não pode ser imposta nem reforçada por uma vontade oposta àquela do corpo social.
Conforme à nossa tradição constitucionalista ocidental, mesmo desde a Declaração dos Direitos do Bom Povo da Virgínia, a finalidade suprema do Estado não é a da autopreservação do Estado. A finalidade principal dos Poderes Públicos visa à conservação de uma dada estabilidade social que permite ao indivíduo e aos grupos desenvolverem-se livre e plenamente ou, na linguagem de clara inspiração maçónica dos velhos legisladores norte-americanos: a utilidade fundamental do Estado radica em garantir o direito à procura da felicidade. Não em conseguir tal fim para os indivíduos, mas em dispor as condições que possibilitem esse trabalho individual. Amam à pátria, como diria Salomão, e parafraseando a Samuel Johnson, não os canalhas que usam o patriotismo como último refúgio mas aqueles que fazem do patriotismo uma virtude civil: a de procurar a sua própria felicidade em harmonia com a do vizinho, sem prejuízo da sua língua, ideologia, raça ou religião.
More from Pedro Casteleiro
7 poemas de Pedro Casteleiro
Pedro Casteleiro nasce em Ferrol (Galiza) em 1968, ainda que cedo se estabelece na cidade da Corunha. Faz os estudos …