Na nervura do dia, daquele dia, ela apareceu. Abriu a janela, como se abrisse para o mundo e revelasse os interstícios dos seus segredos e descobrisse outros. Lá, se colocou quase imóvel, quase estátua fincada. Lá, se pôs como sentinela. No clarão do dia, das névoas que rondam os ares, dos movimentos peremptórios e repetitivos e compulsivos do dia que se estica, ela se prostrava entre os vértices da janela e ficava horas e horas, como soldado sem armaduras. Alguns pássaros, raríssimos, passeavam rente à sua janela. Ela morava no 12º andar, de um prédio antigo, do centro da cidade, que não via uma reforma desde a data de sua construção. Uma típica gaiola vertical. Do alto, o que era perceptível era o movimento do pescoço e da cabeça, obviamente que os olhos seguiam o curso dos ângulos. Olhava para o alto e mais comumente para baixo. Pensava o quê? Ou não pensava em nada? Sua existência tinha alguma essência? A construção do seu ser-no-mundo era insignificante, era vazia, era opaca! Da sua janela avistava milhares de janelas, porém todas fechadas e ensimesmadas. Respirava o ar que se comprimia entre os edifícios e abaixo dela havia vida, porém sórdida, (insetos, ratos, vermes, bactérias, vírus e humanos,esse substantivo precisa de um parêntese a parte). Teria algum desconforto? Medo? Medos? O ar que respirava a asfixiava. Os medos dela eram os mesmos das multidões. Os medos da moça estavam impregnados nos seus poros. Da sua janela, o que via? Seu olhar era absorto e absurdo! Da sua janela, ela sentia medos. Da sua janela, exalava medos pelos ares. Debruçada nos vértices, lá estava ela. Inclinou a cabeça para o alto, viu mais 6 andares acima dela. Olhou para baixo e não se sentiu desconfortada. Acostumada com tudo o que via, todos os dias. Esse era o seu insustentável perigo. Acostumar-se. Enxergava dali movimentos compulsivos e descontroláveis. Ratos dominavam as ruas, vielas, becos e buracos. No lugar de corpos eretos, o que ela via eram ratos, ratazanas. Brancos, pretos, pardos. Enormes. Eles comandavam a cidade. Somente ela, a moça da janela, era a estranha, a alienígena, não conseguia entender as mutações, as transformações ocorridas. Havia um mau cheiro insuportável, lixos espalhados pela cidade, fétidos, consumiam toda a cidade, não existia controle nenhum, toda podridão rua à fora e os roedores enfurecidos e famintos devoravam tudo o que viam.
Absurdamente, se viam ninhadas, colônias e colônias de ratos. Milhares de ratos nasciam incontrolavelmente. Seres asquerosos e repugnantes. Chiavam e chiavam! O barulho era ensurdecedor. As fêmeas comiam e procriavam. Desordenados, uns em cima dos outros, lutavam por espaços, por comida e água. Muitos eram canibais. A garota, somente ela, a única da espécie humana não foi contaminada. A peste dizimou todos os humanos e os ratos dominaram toda a cidade. Não há mais sinal da raça humana, nem carcaças. Os roedores eliminaram tudo. Ratos saindo dos bueiros, das calefações, calhas, dos canos, enfim, de todos os buracos. E ela, quase imóvel, acompanhando o trânsito dos roedores, dos camundongos, sem evidenciar nada, nenhum transtorno, nenhuma preocupação, nenhum sinal de assustada. Seus medos eram outros. A angústia que a consumia, que a asfixiava tinha um outro valor. Ela esperava o quê? Queria ver o quê? O que poderia um ser para-a-vida?
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Maurício Gomes é professor de literatura, jornalista cultural e escritor. Meu primeiro livro foi lançado em 2012, (Des)caso com poesia: Inquietações. Participei de várias antologias e revistas literárias (Portugal, México, Moçambique, Estados Unidos e Marrocos) e festivais internacionais de poesia (México, Marrocos e Tunísia). Fui agraciado em alguns concursos de poesia e contos. Sou do Brasil e moro em São Paulo.
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