Em “Sangue, suor lágrimas”, Cecília Barreira, desmonta com perícia, os estratagemas de uma sociedade minada pela cobiça e instrumentalização das pessoas, onde se disseminam os apegos calculistas, as debilidades e submissões emotivas inseridas no absurdo da existência, na luxúria, no suicídio, no narcisismo e egoísmo, nas famílias desestruturadas, no conformismo com a mediocridade, na chantagem e manipulação. De facto, as paixões humanas, tanto edificam e criam, como destroem. Os vícios humanos analisados com destreza, sugerem contos de grande interesse para o estudo da psicologia.
As temáticas nesta obra, surgem acutilantes e abordadas com a intensidade de um gelo cortante onde o desencanto das relações ao longo de épocas, fere corações. A guerra para alcançar a fama a todo o custo provoca situações de um grau de agressividade ímpar. A mesquinhez e a ganância conduzem o indivíduo a um terreno de vulgaridade, que só para si próprio parecerá satisfatório. Desenvolve-se uma sovinice libertadora de sacrilégios que, de forma sádica incita amarguras, cria pavor e instiga a depredação. O humano como predador veste-se de falsidade como na tragédia grega.
Cecília Barreira cria indubitavelmente com mestria literária, enredos de estupro, sanguinolência, falta de ética, onde algozes arquitetam esquemas para roubar e maltratar, num aproveitamento das fraquezas alheias.
Relembrando o filósofo Kant, o que caracteriza uma ação realizada por dever não são os interesses particulares ou inclinações. Uma qualidade humana, pode conduzir à ruína se não se basear na boa vontade, no sentido de excluir das ações as intenções egocêntricas que estão sempre por detrás dos gestos. Infelizmente sofremos a experiência de uma sociedade que alberga despudoradamente a ideia, de que o ser humano não deixa de ser um simples objeto de uso temporário. Podemos estar em conformidade com o dever, mas escondem-se neste tipo de ações, egolatrias calculistas e gananciosas.
A autora denuncia claramente a questão do declínio do casamento na expetativa do amor e a posterior desilusão. Uma vida aparente sujeita aos cânones, referindo contextos de pura hipocrisia. Destaca a problemática do mundo dos sentidos, os ímpetos, a felicidade e as fragilidades. Acusa nas suas narrativas uma ostentação caótica de elementos reprimidos no inconsciente das personagens que genialmente concebe. É o caso do ciúme que surge como potenciador de atitudes violentas, surgindo com díspares feições, podendo advir do sentimento de inferioridade ou quando acontece a depreciação do indivíduo.
Cecília Barreira destaca nos seus relatos, as guerrilhas psicológicas, os distúrbios mentais e desejo de posse, condutores e geradores de equívocos. Temáticas referentes à sociedade humana merecem destaque, como a intromissão ilegal e indecente na vida das pessoas, vítimas da alienação e isolamento. A dependência doentia das redes sociais, cria uma NET exploradora de carências afetivas. Aborda de forma resoluta a inocência das crianças e exploração de menores, a problemática das relações através de plataformas virtuais, destacando a questão da solidão. Surgem neste contexto, terrenos instáveis de vazio e medo, fazendo da amizade um jogo de poder, agravado pelas condições sociais, salientando o desemprego, durante a pandemia. Situações que acrescentam substância ao conteúdo destes contos fabulosos, desconstruindo as perturbações dos indivíduos na sua mais profunda patologia.
Fazemos parte de uma comunidade que acolhe o psicopata por entre a recreação de marionetas do absurdo e perversão da condição humana numa sociedade desigual, onde o óbito dança de forma macabra perante a falta de dignidade no final da vida. A capacidade de impostura e de consecução, está presente nesta figura perfecionista e rígida que infelizmente algumas vezes, ocupa funções pertinentes de poder. Transversal à obra, surgem labirintos de hidrofobia como um sentimento de protesto, insegurança ou deceção, contra alguém, quando a autoestima se sente mutilada.
“Sangue, suor lágrimas”, uma obra de Cecília Barreira, deveras aliciante que desmistifica o relacionamento humano e se assume como uma crítica feroz sobre o lado mais sombrio do Homem. Cria movimentações cinematográficas, fortes e vivas, instigando uma leitura hipnótica que capta a curiosidade do leitor.
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Ana Maria Rodrigues Oliveira, licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
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