Desde o texto inicial, de grande fôlego e em prosa poética, reconhecemos a expressão de uma voz enjaulada no mesmo corpo que a suporta. Como se o próprio corpo fosse moldado como jaula para ocultar a sua verdadeira função aos olhos do indivíduo, por arte de um lendário encantamento. Criaram para ele o engano de que a casca do fruto é cárcere e não o fruto mesmo, a couraça que protege o que de valioso possui no interior. Aquilo que deve ser libertado no justo momento em que está pronto a germinar. Perdem-se assim, inevitavelmente os referentes ao positivo, o luminoso, e o bom recebe inexoravelmente a mácula do demoníaco: “cruzando o inferno, que é um jardim, que é um gesto autoritário, que é o esquecimento, que é a poesia”. Até a poesia, símbolo libertário por excelência, cai no caixote do lixo nesta visão, por falta de referentes para o crescimento humano.
A falsidade, os fantasmas, as sombras, a desvalorização do eu como objectivo de um Sistema que visa a fácil manipulação através da insatisfação dos homens, estão presentes neste livro como nos anteriores do autor, embora a perspectiva política não ser tão evidente como em, por exemplo, No limiar do silêncio. Tudo neste mundo descrito se perde, tudo se estraga. O tempo parece ser aquilo que se debulha no caminho inevitável ao inferno. Nesta perspectiva, surgem as doenças, as profundas doenças crónicas que convertem o doente em um tipo social; a mediocridade, a corrupção, que são inoculadas constantemente na rede social; o veneno que expectoram as instituições religiosas, ainda que já a poucos produzam dependência. Drogas de outra época, talvez esta última, drogas de sempre, as outras.
Neste sentido, em alguns poemas se deixa ver o protesto explícito, como no poema oito da segunda parte:
“Desejo a pureza que se me negou”
…
“Não, não, os satisfeitos não sabem.
Os satisfeitos são.
Comem e fodem.
Este é o tempo dos cabrões.
Sei-o desde esta dor tão real.
Um nada de sangue
que entra na água
e lhe dá cor.”
Noutros textos, o pensamento atinge outras profundezas e uma reflexão sobre a natureza do facto poético surge em poucos versos, com um estilo quase oriental:
“Beberei do teu corpo
comerei da tua alma
e serei da materia que forma
a estrutura maldita do poema”
Assim o poeta participa da substância do poema. Ora o poema é carne da sua carne, ora o poeta deve transmutar-se em poema para oferecer parte de si próprio no processo criativo. Poderíamos dizer que a criação poética se leva a termo como o acto feminino universal.
O materialismo absoluto é o veneno da humanidade. Constitui o primeiro prato de todas as ementas. E significa não a impossibilidade da alma, de resto algo demasiado inexplicável para ser tido em conta, mas a impossibilidade das ideias, do uso básico da inteligência. Como alternativa a este mundo de sombras que sofremos, torna-se preciso descobrir a origem da cegueira. Daí virá a consciência do que o mundo é, agora ocultado trás o véu das falsas verdades. Por enquanto, se não fazermos o que for preciso para impedi-lo, o estômago continuará a crescer, os olhos permanecerão impedidos, e nada servirá para afirmar-nos na queda infinita a que nos querem condenar.
A vida extrema foi publicado na editora virtual portuguesa Arcosonline (http://www.arcosonline.com/) em junho de 2005 com um desenho extremamente luminoso, como precisa um poemário que requer a máxima atenção e o suporte mais digno.
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