Patricia Peterle nasceu em São Paulo e cresceu no Rio de Janeiro. Atualmente mora em Florianópolis. É crítica literária, editora, tradutora de textos literários e filosóficos e professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Santa Catarina, atua também na Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas daUniversidade de São Paulo. Tem Pós-doutorado em História pela UNESP e em Poesia Italiana pela Università di Genova. Seus poemas foram publicados nas revistas Acrobatas, Mallamarges, Ruído Manifesto. patriciapeterle@gmail.com
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UM SENTIDO LÓGICO DO ILÓGICO
para Giorgio
É verdade não importa a distância.
Hoje nos reencontramos e você sabe
um pouco de ti carrego comigo:
óculos e bigode não podem faltar.
O cheiro do filé de bacalhau frito de Santa Barbara
se mistura ao sabor das alcachofras
um lançamento de livro parada no lago Bracciano
e um aperitivo
afinidades siderais não passam
com o passar das estações
como a perspectiva da cidade se renova
garupa rasante em carros e monumentos
viagens num punhado tomado da lembrança.
Lembrança desejo irrompente quando
as baterias do controle se tornam mais fracas.
Aqui a distância não importa nada
as regras do jogo são outras
não sabemos
as inventamos
hoje nos reencontramos na praia
vestes elegantes num jogo sem sentido
sem sentido lógico sentindo a areia e
as nossas vozes que se falavam por números
alógicos. Você dizia 26 e eu respondia 12
você 234 e eu 71. Subterrâneos cinzeis
ampulhetas infindáveis
precipícios de um sonho.
É verdade a distância não importa.
*
O que não devo fazer
para me livrar dessa
mente inimiga
perene hostilidade
diante da feliz culpa
de ser o que sou
ouriço, joaninha
*
INVASÃO DE PRIVACIDADE
para C.A.
Você mudou de casa. Isso já foi dito.
O cenário também mudou e com ele
você ficou mais visível. Nossos encontros
semanais agora tinham uma participação
especial. Sim, é verdade, que estava meio
escondido, um pouco para trás, mas as linhas
fortes e o olhar enigmático eram
inconfundíveis.
Você literalmente mudou de casa e
quando te revejo posso em pensamento
até mudar de casa.
Nessas horas nesse fluir intempestivo
o que muda de casa é outra coisa.
Você a conhece bem já trabalhou
com as suas e com as de outros.
O que muda de casa são as palavras
deslocadas em desuso desacompanhadas
reacompanhadas reusadas realocadas
numa voz que agora me persegue
mesmo quando estou desconectada
do nosso zoom.
Voz em nada solipcista
nada de monograma
tudo Monodrama.
Denise Levendorf, Olga Orozco, Eugenio Montale,
Lucille Clifton, Tahar Ben Jelloun e seu cão evocante
o de Giacometti secura e resistência
dureza no acre postal
Livro do cão.
Esses e tantos outros ganham novas nuances
quando suas palavras descarnadas
infinitas coleções
mudam casa e voz.
Gestos indissociáveis da fiel camiseta
sempre preta
cheia de páthos
numa janela
limiar virtual da casa.
Hans-Peter Feldmann na parede
outro colecionista alla Benjamin
montagens e remontagens
e você, Beckett, no porta-retrato
talvez benção dessa pecaminosa voz
apostadora da impostura
para quem lição – numa rima banal – se torna lesão.
*
De amanhã, as rugas do lençol
as gotas na pia, a xícara trocada
na mesa. Indícios de um lento
processo, quando alguma coisa
inicia a fazer sentido.
Os pensamentos – cada um –
retomam seus fluxos nas ruinas
dormentes de minha mente.
O tempo passa, aprendo e reaprendo
a cada renascer.
*
Quando estou sozinha, estou
realmente sozinha?
Quando falo sozinha, falo
realmente sozinha?
Estou realmente a sós quando escrevo?
Estou com, falo e escrevo
para uma comunidade imaginária
mutável que me habita, que decide
quando se dá a ver
peso de chumbo que
caminha como pluma
Pequena comunidade que enganosamente
me faz sentir
só.