Domingo, 1
Comecei, hoje, a escrever este breve diário, que só fecho quando nos encontrarmos.
Saí de manhã, vesti um fato muito branco apesar de ter chovido, refresquei nas covinhas cheias de água um rosto mais bonito que o meu. Como se fosse ter contigo.
…
Caminho triste e cheio de saudade, nem reparei nisso. O coração é um caroço de pedra a rasgar a garganta. O caminho dissolve-se numa nuvem que lhe come o chão. O caroço é uma ilha fechada pelo mar.
Dou-te a chave para abrir a ponte que interrompe e vence o abismo largo do tempo e das palavras. E espero, como um condenado espera pelo perdão.
Segunda, 2
Quando me sento a escrever e a pensar, aqui, recordo as janelas abertas e solitárias devoradas pela fome de nos vermos, os arquipélagos dispersos como pessoas numa vida, os muitos quilómetros entre estar encolhido à noite com frio enquanto avisto no fogo as luzes longínquas da cidade em que tu moras.
Queria que fosse amanhã. Escrevo por isso. Quase um vício, uma saudade que já se prefere quase a si própria de tanto se saber. Mas amanhã, outro dia, aquele que nunca foi exactamente como previsto.
…
A luz matinal entrega-me a tua carta. O carteiro leva com ele o magma de uma fogueira que tinha o tamanho do mundo. Entre os meus olhos fica esse cheiro de longe.
Reinvento as horas felizes para entorpecer o travo amargo do cálice.
Caminho pelos picos das montanhas. Os meus passos tentam engolir a noite oculta para te ver.
Estás longe. Não ouço nada
Na serra verde e calada.
Terça, 3
As linhas do horizonte irrigam-se com a seiva quente e vermelha do sangue. Um trilho circular, angustiado, mas inquebrável. Traços no vazio, fixos e vãos.
Gostava que fossem de água. Que sobre eles soprasse fecundo e lhes cobrisse de luz o nome do sol, o brilho dos olhos que é o fio de oiro que nos liga à vida. Como um artesão moldando a quente o vidro das palavras.
Quarta, 14
Vemo-nos mudos. Descobri agora que és a minha própria infância.
Ao sair de casa, passou uma luz rápida pelos morros. Descobri-a fora da pálida memória da razão, com a clareza das coisas óbvias, e segui-a. Segui-a mudo, apesar de nada me fazer falta já.
Por estar feliz, cobri de glória a seda macia da pele e, para tocá-la, andei na espuma das tempestades a recolher a voz dos búzios. Por ter conseguido, continuo mudo.
Quinta, 5
O amor acaba e começa ao mesmo tempo.
Medito nisso metido no caroço da noite, na cinza do céu esvaindo a suave poeira levantada pela dança dos teus passos…
Abandono a casa: somos imortais só quando partimos,
Alma da minha igual e, como ela, mortal.
Sexta, 6
Às vezes penso em ti sem voz e sem perfil, asa e azul a pastar a distância.
Depois tenho medo que seja verdade. Por isso caminho. Ceguei. A voz dos pássaros é o meu bordão mas fecha-me em círculos, ensurdece-me e regressa atordoada e sem forças à tona dos trilhos desertos.
Sábado, 7
Não nos ensinam a procurar, mesmo o que nós encontramos. Mas, quando estou contigo, sinto as coisas todas juntas e calo-me porque te escuto.
* * *
Francisco Soares (segundo pela esquerda) participou em um recital poético para a celebração do vigésimo aniversário da Revolução dos Cravos (25 de abril de 1994) na Corunha, convidado pelo Grupo poético Hedral junto com os poetas portugueses José Manuel Capêlo, António Cândido Franco, João Carlos Raposo Nunes e Avelino de Souza. No final do evento, cantámos juntos Grândola Vila Morena e o Hino Galego acompanhados por gaita e piano (Xulia Dopico) no salão nobre do liceu Eusébio da Guarda.
Na actualidade é gestor académico na Universidade Independente de Angola.