“Porque no impossível é que está a realidade”
(Clarice Lispector)
A realidade inabitável
Clarice Lispector (1920-1977), autora ímpar, produziu uma obra inusitada no cenário literário e cultural brasileiro. Sempre com um ângulo dissonante, descreve o mundo e as sensações de suas personagens. Várias opiniões cercaram as obras da autora. Algumas argumentavam que a literatura clariceana era voltada para o “Eu” burguês, considerando-se que lhe faltava um realismo social; outras a achavam muito sofisticada para a média de leitores; outras ainda analisaram esse “eu” literário a partir de uma perspectiva filosófica ou de uma reflexão acerca da autoficção. Na verdade, é uma obra que permite muitas miradas, e que se inseriu nos quadros da literatura brasileira com muita potência na linguagem. Neste ensaio, será abordada a escrita da realidade e os dilemas do criador literário na obra A Hora da estrela (1977).
A convenção da mimesis – a interrelação entre linguagem e a representação de fatos do mundo – entrou em declínio a partir do século XIX; o debate se a linguagem tem a competência de representar a realidade, ou não, tem uma história de cerca de dois mil anos. O modernismo no século XX desestabilizou a linguagem literária de forma contundente (Auerbach, 1976). Mas ainda assim, a questão da linguagem e seus usos pra descrever o real se imiscui na prática de intelectuais que têm vivido o dilema: participar ou não da vida de seus povos através da escrita literária, de modo explícito ou não, sobre os acontecimentos sociais que os circundam? Como diz Firtjol Capra: “Os místicos orientais, por sua vez, também têm consciência do fato de que todas as descrições verbais da realidade são imprecisas e incompletas.” Mas escritores e artistas sempre tentam à sua maneira comunicar pelo menos um resíduo de sua realidade. O real não é inteiramente captado, e desliza da escrita, ainda mais quando se tenta apresentar personagens e os dilemas do intelectual na sociedade contemporânea.
Clarice Lispector sempre enfrentou o dilema da linguagem na nomeação de objetos ou personagens, com caracterizações de espaços e actantes, usando de uma exatidão descritiva que contorna os objetos por vários ângulos. Como se pode notar, na ficção clariceana não acontece muita coisa: escrita na direção do oblíquo/vertical, para dentro e para o fundo, com uma linguagem ensimesmada que leva adiante as questões do tempo e do ser que escritores/as de língua inglesa enfrentaram no começo do século XX, como Virginia Woolf.
Em geral, suas personagens. são construídas através de uma linguagem “intimista”, diferente de outros escritores. Em suas obras anteriores à obra A hora da estrela (1998, citado também como AHE; as páginas que aparecem se referem a essa edição), ela narra, mas não deixa de aprofundar as questões ontológicas, em seu estilo “primitivo”. Da superfície ela submerge às camadas mais fundas, trazendo à tona as agonias de suas personagens. O que ela faz é nomear o fundo na superfície da linguagem escrita visível e expressiva e sonda, como escafandrista, as regiões onde se encontram os “monstros” marinhos e as belezas subaquáticas.
Sua transfiguração da realidade se caracteriza por uma busca pelo real. E essa procura já está presente em seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem (1943); em A Maçã no Escuro (1961), a busca do concreto é uma obsessão da escritora. Em suas narrativas pouco acontece, são textos com intensas descrições de objetos.
Sabe-se que a representação da realidade através da linguagem é algo que pode levar escritores/as a um bloqueio na escrita literária ao tentar “falar toda a verdade”. Vilma Arêas, tratando do problema do narrador, reflete sobre essa dificuldade: “’Falar a verdade’, laborar um ‘documento’, ‘saber intimamente’, desde logo se mostram projetos impossíveis.” (ARÊAS, 1990). Esse “fracasso da escrita” já era sentido por Clarice Lispector em vários textos (romances, contos). Por exemplo, em A paixão segundo G.H (1979 [1964]), na linha do intimismo, a narradora tenta se aproximar o máximo possível do objeto. No questionamento ontológico, a narradora chega ao ponto de ver o nada, a nudez: “Eu tinha medo da face de Deus, tinha medo da minha nudez final na parede”. Uma das coisas que a autora indaga em seus escritos tem a ver com as limitações da linguagem para nomear a existência das coisas. “Para escapar do neutro, eu há muito havia abandonado o ser pela persona, pela máscara humana. Ao me ter humanizado, eu me havia livrado do deserto.” (G.H., p. 109 e 116).
Rumo ao instinto de realidade
Note-se que em obras anteriores, como alguns contos das obras Onde estivestes de noite (1974) e de Felicidade Clandestina (1971), já se percebiam denúncias sociais pungentes que se intensificam na obra A hora da estrela (AHE). A história se inicia com uma reflexão a respeito do início das coisas. Logo no primeiro parágrafo, o narrador chega à conclusão de que o “universo jamais começou” (AHE, p.11). Nessa obra transparece a tensão da escritora ao falar de um tipo social que ainda não tinha sido protagonista em suas obras anteriores: a personagem outsider, marginalizada. Numa situação aporética, enfrenta a condição de uma personagem sem complexidade psicológica aparente e inventa um “destino” para essa vítima do espaço urbano.
Aí, a autora se entrega aos “fatos do mundo” e passa a registrá-los. A autora se insurge contra a maré ao mesmo tempo que pratica uma literatura menos rebuscada. Com uma escrita “cada vez mais simples”, e sem “aguentar a pressão dos fatos”, tenta a construção linear da personagem Macabéa: o momento em que se conta uma história cronológica de um ser de “carne e osso”. O narrador, escritor ficcionado, que se confunde com a autora, constrói a protagonista apontando suas características físicas e sociais: raquítica, nordestina, datilógrafa, virgem…: “e preciso falar dessa nordestina senão sufoco” (AHE, p.14, 23 e 17).
Essa virada para um “instinto de realidade” (parafraseando Machado de Assis, em “Instinto de nacionalidade”), inclui abandonar a personagem de classe média ou burguesa deslocando o registro para as camadas excluídas da sociedade. O giro operado por Lispector traz consigo questões sobre a fatura literária, como aponta Regina Dalcastagnè:
“Afinal, poderíamos perguntar, por que uma dona-de-casa abastada merece centenas de páginas para a descrição de seus conflitos interiores e a pobre nordestina tem de ficar restrita aos fatos? Ela não seria complexa o suficiente para ser apresentada com sua subjetividade? Limitar essa existência aos fatos aproximaria o relato mais ao jornalismo e a outros gêneros “menores” do que ao romance, gênero “maior” desde as revoluções burguesas? Macabéa não seria digna da “grande arte”?” (DALCASTAGNÈ, 2015, p. 85-6).
Pode-se sugerir que a autora não teria intimidade suficiente com o universo retratado em AHE, o que se denota de sua condição social de trabalhadora intelectual. Também o narrador, alter ego da escritora, tenta se localizar socialmente e vê que tem até uma posição privilegiada em relação à sua personagem: “Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim, de algum modo desonesto” (AHE, p. 18). Revela nessa passagem uma acentuada autocrítica. Não quer, todavia, situar-se numa classe social: “Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.” (AHE p. 18 e 19).
Num certo sentido, o narrador, nesse trecho, confirma o que se sabe da posição do intelectual frente às questões sociais contemporâneas. O intelectual (escritores, artistas, filósofos e toda pessoa que trabalha com a produção cultural) é, num certo sentido, “marginalizado”. O importante é perceber que o narrador (“escritor”), não se coloca acima das classes sociais, mas à margem delas, o que não significa necessariamente que o intelectual seja descomprometido com as classes. Os fatos são realizações sobre as quais não se pode deixar de falar: “Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir.” (AHE, p. 16).
Além disso, o narrador se coloca como: “Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”: sabe manejar as palavras (“palavras são sons”) e entende de música (“É que esta história falta melodia cantábile” (AHE, p. 16), “baixo grosso da dor” e “alegro com brio”. São citados também, na “Dedicatória do autor”, os mestres da música clássica: Bach, Beethoven, Chopin, etc. A diferença de classe entre narrador e personagem se concretiza nos signos de distinção cultural. O narrador também se defronta com uma realidade maior: “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública.” (AHE, p. 9 e 10).
Um outro aspecto do pequeno romance a se destacar tem a ver com o nome da personagem: Macabéa. No livro, o ser humano está dentro de um universo pleno de signos: o próprio nome da personagem está pleno de simbologia de uma situação de resistência, junto com o fato de ser chamada no título com um segundo nome (estrela). Em perfil da autora, o psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg afirma que o nome Macabeus “foi usado pela primeira vez na insurreição de Juda Macabeu contra os opressores romanos”; macabeus também foi grupo revolucionário judeu (“A estrela de Davi, na Bíblia, uma obsessão de C.L.” Folha de São Paulo, 10/08/86). Sugere-se que Clarice teria usado essa ideia na composição de Macabéa.
A personagem vive num universo insólito, que impõe um tipo de “leitura” e, por conseguinte, um novo entendimento das pessoas que habitam essa realidade inusitada, estabelecendo um novo tipo de relação social. Constata-se a dificuldade da personagem para interpretar os códigos sociais e para decodificar a realidade de acordo com os padrões de uma sociedade urbana fragmentada: ela não sabe porque acontecem as coisas. Isso é bem registrado nos diálogos que ela tenta com o seu namorado, quando ele pergunta o que é do agrado dela e ela responde que não sabe dizer as coisa.
Na história de Macabéa, o questionamento sobre o fazer literário se manifesta na indecibilidade dos possíveis títulos: “A hora da estrela, ou a culpa é minha, ou…”, e também nas hesitações do início da obra. Sabe-se que a escritora escreve para dentro, é o que se percebe na maioria de seus textos e se depreende do que ela própria afirmou, em entrevista: “…Não tem gente que cose para fora? Eu coso para dentro.” Fala sempre do íntimo das coisas. Ela é, como disse certa vez, “implícita.” Já nesse texto, a escritora se transmuda em narrador, se torna “explícita” e procura falar da realidade exterior em contraposição ao que vinha fazendo até esse período em sua escrita. Aí se percebe a inflexão na escrita da autora. Uma virada rumo à realidade social.
“História exterior e explícita, sim, mas que contem segredos.”. “E foi quando pensei em escrever sobre a realidade já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer ‘realidade’”. E, em seguida, confessa: “É. Parece que estou mudando de modo de escrever.” (AHE, p. 13 e 17). O “é”, que inicia e termina a frase, se torna um verbo absoluto, e que tem origem na forma coloquial, usado em conversas informais. A dúvida (“Parece…”) inicial da frase seguinte também faz parte desse giro da autora.
A “densidade” que há em A paixão segundo G.H. não é encontrada em A Hora da Estrela. Isso não significa uma mera guinada do modo implícito para o explícito como querem alguns; no entanto, não significa uma simples continuidade de estilo da escritora.
A posição do intelectual é sublinhada nos livros de C.L., mormente em A Hora da Estrela. Notar que o narrador que se nomeia Rodrigo S. M. e que conta a vida de Macabéa, é, de fato, Clarice Lispector (ARÊAS, 1990). De um escritor, que usufrui dos bens necessários à sua subsistência – numa realidade que só deixa migalhas para as maiorias ofendidas e que quer falar do pobre – pode-se dizer: escreve por solidariedade.
Recorramos ao texto de Clarice: “Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional e preciso falar desta nordestina senão sufoco.”. Nesta passagem, percebe-se nitidamente o conflito que um intelectual – que supostamente não está a serviço de uma classe – enfrenta ao abordar um assunto sobre o qual nunca se posicionou abertamente. Além do problema social subjacente em A Hora da Estrela, a escritora encara a dificuldade de grande parte de artistas e escritores de países na periferia do capitalismo, que precisam falar do pobre, mas não podem deixar de beber seu vinho. Ao final da obra, um trecho bastante elucidativo: “E agora, agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas, mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” (AHE, p. 17 e 87).
O intelectual e a escrita da realidade
Para finalizar essas notas, uma indicação de autores que também enfrentaram as questões da realidade social. Vários escritores/as “resolveram” ou superaram esse dilema no Brasil. Podemos citar Graciliano Ramos, entre outros/as, cada um transfigurando a seu modo a vida brasileira.
Em Graciliano Ramos, percebemos o auge dessa superação em sua obra-prima Vidas Secas (1936), em que é colocado o problema do subdesenvolvimento regional. Suas personagens não teriam as condições sociais e culturais necessárias para decodificarem a realidade. O autor usa, então, o discurso indireto livre para fazer com que suas personagens “falem”.
Apesar da grande diferença de estilo e de escritura entre Graciliano Ramos e Clarice Lispector, em algum momento desponta uma semelhança das personagens nos dois autores. Num paralelo superficial poderíamos dizer que Macabéa seria a continuação de Vidas Secas na cidade grande: a saída pelo sertão ou pela via da cidade é uma incógnita. No campo, há “sinal” natural; na cidade o problema do “destino” humano. A autora se aproxima de uma epopeia de um grupo social explorado que foi colocado para viver (?) às margens das oligarquias dominantes. Na grande desigualdade socioeconômica presente na sua história, a personagem não se apercebe da máquina social que a inferioriza. O fim de Macabéa é trágico (cidade), mas também o seu início (sertão). A autora capta muito bem o movimento migratório que ocorre no país há algum tempo. Em A Hora da Estrela, subjaz esse tema da migração interna no país.
O escritor ficcionado na obra tenta fazer a personagem falar, mas as palavras não “saem”. O narrador luta consigo mesmo ao ter que escolher uma vítima para sua estória, uma vítima que tem de ser “eleita”. Vítima em uma comunidade migrante outsider. Está em jogo a manutenção das estruturas coloniais às custas do sacrifício de milhões.
Clarice Lispector adota, em suas diversas obras, um ponto de vista ético e sensível sobre as questões humanas de seu tempo, sem necessariamente fazer um discurso panfletário. Macabéa simboliza, de alguma forma, o sacrifício daqueles que procuram se livrar das misérias da vida, bem como as perplexidades do ser humano “comum” diante de um mundo inundado por informações e desinformações. No fim do livro, a ironia se apresenta na figura de Madame Carlota, uma vidente que prevê um final feliz para a personagem, no entanto, acontece o contrário: o sacrifício de uma figura trágica em sua simplicidade. É chegada a “hora da estrela”.
Referências
ARÊAS, Vilma S. “Um Pouco de Sangue”. ESCRITURA: teoría y crítica literarias, v. 28, p. 403-416, 1990.
AUERBACH, Erich. Mimeses. Trad. São Paulo: Perspectiva, 1976.
DALCASTAGNÈ, Regina. Contas a prestar: O intelectual e a massa em “A hora da estrela,” de Clarice Lispector Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Año 26, No. 51 (2000), pp. 83-98. Disponível em https://alfredocesarmelo.files.wordpress.com/2015/07/dalcastagne-intelectual-e-a-massa.pdf. Acesso em 05//03/2021.
GODBERG, Jacob Pinheiro. “A estrela de Davi, na Bíblia, uma obsessão de C.L.”. Folha de São Paulo, 10/08/86.
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1979.
______________. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
CAPRA, Fritjol. O Tão da Física. Trad. José Fernandes Dias. São Paulo: Cultrix, 1995.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record,1980.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de janeiro: Nova Fronteira,1985.
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Valmir de Souza
Professor, pesquisador e ensaísta. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo USP). Realizou estágio de pós-doutorado no Programa de Gestão Pública da EACH/USP, com foco nas políticas culturais. Defendeu a Tese Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa (2006). Autor do livro Cultura e literatura: diálogos (Ed. do Autor), publicou artigos e ensaios, entre eles, “História e literatura: uma relação de amor e ode em História do Brasil de Murilo Mendes” e “Memória poética do espaço: Ouro Preto por Murilo Mendes” (ambos na Revista Estudos Históricos), “Memória poética e esquecimento em História do Brasil e Contemplação de Ouro Preto de Murilo Mendes” (Revista Ipotesi), “A leitura no contexto da pseudocultura contemporânea” (Revista Leitura: teoria e prática), “Discursos sobre a cultura: formulando políticas culturais” (Revista do CPF/SESC/SP), “Murilo Mendes: uma poética da dissonância” (www.revistasetefaces.com). Associado ao Instituto Pólis.