O nosso recente colaborador Vergílio Alberto Vieira teve a oportunidade de participar no último Encontradouro, «um encontro cultural de contornos internacionais, cuja génese tem origem na literatura como meio divulgador do conhecimento de outras culturas, de outros povos, de outras escritas, e na torna-viagem do regresso levar a espacidão do Douro mundo afora […]». Sua intervenção teve vários pronunciamentos complementares, mas o essencial é agora publicado pela Palavra Comum. Tem por base —segundo o autor— a leitura do livro Libertação num contexto geo-humano identificativo do carácter e estilo torguianos.
MIGUEL TORGA
Fulgor de pedra
morta
arde
onde a cegueira
dos dedos
principia
(O Voo da Serpente / Efígies, Porto: Editora Campo das Letras, 2001.)
Tenha o poeta, ou não, a percepção de que nunca é tarde para que seja: “Condição do mundo (…) ser do mundo”, que outro culto, que outro culto deverá prestar-se à sua obra, senão aquele que a memória sagrou em pedra de ara; a palavra deu como oferenda à luz do coração; a voz e o gesto sacrificaram à musa, trazendo de volta à terra, o que antes já fora sol, primeiro sol, e salvação, a não ser do mundo, do lugar.
Admitindo que ninguém o sabe, que outra condição poderá influir (n)a escolha do poeta que, um dia, convocou para “a terra do vinho”, não os deuses de outrora, mas “os deuses novos” da reconciliação humana, da qual a vida que: “(…) e pão de quem tem fo9me dela” espera que “a alegria da festa” chegue depois de “ordenado o pão, curado o vinho” no altar onde, a um tempo, o oficiante consagrou as primícias dessa libertação plena que se tornou renôvo da: exortação, apelo, aventurança, protesto da mais fraterna lei de que nascemos?
Como na época de Galileu, a Terra nunca deixou de mover-se na poesia de Miguel Torga, o poeta que pagou Tributo (1931) às suas gentes e bichos, que de vida a povoaram; o mundo, de criar-se no reino maravilhosos onde o poeta se tornou Orfeu Rebelde (1958); sem universos em expansão de realizar o sonho de o homem e as musas se unirem para gerar a obra original que novas artes, novos engenhos, por sua vez, humanamente iluminaram.
“Venha o sol que vier, é uma promessa / O que a manhã nos traz na sua alvura. / É outra vez a vida que começa / Aberta de inocência e de frescura.” (Libertação / Fé, Coimbra, 1944).
Passados os anos de “exortação” da juventude, logo a hora do “apelo” se fez ouvir na obra do poeta de Libertação, não estava ainda à vista o fim da Segunda guerra Mundial, nem se augura o Armestício.
Torga prosseguia a cruzada de esperança, que o levara, às prisões doa Ditadura, primeiro, depois a perguntar: “A quem falo no mundo? Por quem foi / Esta bandeira branca de poeta? (op. cit. p. 10)
Fechava o poema a que, pungentemente, dera, o poeta, o título de Drama, com a premonição de que dias melhores trariam à vida “gasta e velha” do passado “a chama” futura (que) se avermelha” para “aquecer o coração”.
Não escolhera, o poeta, como Hamlet quem por ele poderia, de resto, então falar.
Da voz que, sob protesto, viria a levantar-se: “Eu ouço a voz que prega no deserto”, sempre nasceu a liberdade com que, de flor em flor, se faz a Primavera “(…) corpo de noiva fecundado”. (op. cit. p. 38)
É certo que é mais fácil falar do que mentir, mas à verdade nunca o poeta de Lamentação (1943) virou a cara, nunca deixou de sentir o coração: “(…) onde um segredo / Só em humana luz é revelado.” (Libertação / Regresso, p. 38)
Só quem a casa regressa sabe quando “(…)em cada rosto aberto”, diz Torga: “outro sol, outro sonho, outra alegria” prenunciam “outra certeza” , na terra “onde os pés sentem firmeza” (Libertação / Lei, p. 44), no chão em que renasceu a vida: “E onde tem, afinal, de se cumprir.” (Libertação / Aventurança, p. 46)
“Era uma voz que doía,/ mas ensinava. / Descobria / mal o seu timbre se ouvia / No silêncio que escutava.” (Libertação / Voz, p. 32).
Tudo o que disse ficou dito, como na Escritura, onde a profecia garantiu que ficaria dito o que dito fosse.
A haver ressurreição, libertadora seria; como o amor, como a verdade jurados por Miguel Torga, o poeta para quem: “Só a razão da vida” fora capaz de ver mais longe, de aspirar a uma claridade mais alta: “Terra, sementes, caules, animais, / Descansavam apenas um momento.” Para que Ressurreição houvesse, nessa: “(…) certeza dum rebento/ Na seiva que sonhou.” (Libertação / Ressurreição, p. 35)
*
Nota: Texto lido no Festival Literário Encontradouro, São Martinho da Anta, Vila Real de Trás-os-Montes, 7, 8, 9 de Maio de 2015.
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