Os Poemas Apócrifos de Paul Valéry, traduzidos por Márcio-André foram publicados neste 2014 pela editora brasileira Confraria do Vento. Desde a Palavra Comum agradecemos imenso ao Márcio-André partilhar estes poemas da obra. Aqui há mais informação deste livro, e lembramos ao público galego e europeu que tem exemplares disponíveis da mesma na Livraria Ciranda, em Santiago de Compostela, o único espaço onde se pode adquirir fora do Brasil.
“Muitos já se aventuraram com a poesia de Paul Valéry, uma das maiores referências literárias do séc. XX, mas poucos ouviram falar das dez obras fantasmas supostamente escritas e rechaçadas por ele. Reunidos pela primeira vez em livro, os poemas apócrifos chegam com exclusividade ao leitor pelas mãos do poeta Márcio-André. Nesta estranha coletânea, tão improvável na bibliografia do escritor, a ponto de autor e tradutor se confundirem, o leitor se deparará com textos híbridos, contraditórios, atuais e provocadores, para conhecer um Valéry imprevisto, que tenta deliberadamente testar os limites entre a ficção e a realidade.”
da série “Toda matéria é leve quando dita levemente”
sair de casa sem o idioma e voltar ao mundo
pelo caminho mais curto
sair da cidade e sair do nome
à espera que
da ausência de antônimos
surja uma qualquer semântica
de afetos selvagens
toda fronteira é mais verbal que física:
no perímetro da língua
todo um contorno de corpo
e os pensamentos
só existem enquanto pensados
na erosão do limite
da expectativa do som
pelo mínimo dialeto das máquinas:
serão as máquinas nossa única herança
as únicas que nos rangerão
versos de amor até o fim
com sua devoção aos mantras
tentarão compor obra maior que a vida
sem entender que a única tarefa
razoável do poeta
é noticiar o fim do mundo
***
mudar de país já não faz diferença
os feriados são os mesmos
com datas distintas
os sotaques são os mesmos
para outros ouvidos
a burocracia é a mesma
com outros nomes para os papéis:
se pudéssemos morrer somente uma parte
– essa que é infeliz –
seria sim possível partir de um lugar a outro
como se fosse mera questão
de deslocamento espacial
mas é preciso levar todos os deuses dentro de si
ante o trânsito das horas:
o que demarca as etapas da vida
são as mudanças do número de telefone
e delas herdamos apenas
as infinitas possibilidades
de uma chamada por engano:
nenhum lugar cabe totalmente em nós
com suas pedras e suas pontes
com seu ar cheio de cor
a volta das borboletas
ao viver na convergência das línguas
conhecemos a dinâmica entre os acentos:
mudar de país já não faz diferença
as vidas ali são as mesmas
em outras pessoas
***
um homem fala
diariamente ao cão
o cão compreende até
onde o afeto permite –
o homem se humaniza com o que há
de humano no não compreender dos cães
como se preexistisse animal
no fim do animal
ou fosse canto de outro canto
no antidizer do latido
ainda perto de onde estamos
quando somos o outro
no oráculo dos afetos:
as cidades não estão somente no espaço
estão no tempo e nós
no tempo delas
aprendendo sobre o mal:
no limite do pátio
o cão mija num limoeiro dourado
fazendo celeste o seu entender
de onde começa o cão
de onde acaba o homem
***
Performance de Poesia Sonora de Márcio-André.
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