Desde a Palavra Comum agradecemos a Carlos Paulo Martínez Pereiro e Alva Martínez Teixeiro as facilidades concedidas para a publicação destes fragmentos introdutórios do livro “Machado de Assis e a mundana comédia. Cinco peças teatrais“, publicado na Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor da Universidade da Corunha, que comemoram os seus vinte anos de existência (1997-2017) dando à luz este volume número 72. O livro é o resultado da colaboração entre o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonoas e Europeias (CLEPUL) e o Grupo de Investigación Lingüística e Literaria Galega (ILLA).
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[Fragmentos do texto introdutório de Alva Martínez Teixeiro e Carlos Paulo Martínez Pereiro: «Uma discutida magia da ausência – Machado de Assis e o teatro da mundana comédia»]
Resulta paradoxalmente fácil e difícil dissertar sobre uma tão invulgar figura como é a do extraordinário escritor e não menos importante intelectual brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que, diga-se antes de mais, tem como parte essencial da sua herança o fascínio que a vários títulos exerce, devido a que, como sintetizara um dos seus biógrafos, Daniel Piza, “enfrentou muitos preconceitos de sua época: o preconceito racial, como um mulato escuro que viveu 49 dos 69 anos num Brasil escravocrata; o preconceito social, como um epiléptico de origem muito pobre que tinha grandes ambições literárias; e o preconceito intelectual, como escritor que adotou linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais aderiu a modas estéticas”.
Esse paradoxo explica-se, aliás, por ser considerado um dos ‘deuses’ literários dos leitores politeístas que redigem as páginas introdutórias a este livro, mas também porque, por esse mesmo divinal caráter, não é preciso seguir totalmente, em palavras de Marco Lucchesi, “o Gênesis do romancista e pintor Cornélio Penna, segundo o qual no princípio era o nada; depois apareceu Machado; e depois foi o nada, outra vez…”.
Na verdade, nem tanto, pois, apesar de razoavelmente ‘machadólatras’ e apaixonadamente ‘machadófilos’, mais do que frivolamente ‘machadoclastas’, nesta breve e condensada introdução, de início e antes de abordarmos a vertente teatral do autor, pretendemos pôr em relevo – com intuitos analítico-descritivos e avaliativo-compreensivos – o invulgar contributo ficcional machadiano numa dupla perspetiva: tanto no que diz respeito à complexidade técnico-literária que sustém uma propositadamente ambígua e hesitante discursividade narrativa – ora de teor satírico ou humorístico, ora em modo filosófico ou realista-outro –, quanto no relativo à radiografia historicamente emblemática, testemunhal e datada de uma cidade do Rio de Janeiro que, de capital do ‘reino unido’, transita para imperial e republicana, e que, no que diz respeito ao complexo retrato da aristocracia e da nascente burguesia carioca (e não só), se apresenta doublé em (re)presentação da complexidade permanente do humano.
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O nosso genial autor (des)considera a facilidade da adaptação aos usos e gostos maioritários do público (in)existente também na sua escrita teatral, nessa “arte destinada a caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora” – Machado dixit –, por muito que nela quase desapareça o princípio de ‘indeterminação’ tão caraterístico da sua melhor e maior ficção. De facto, Hélio de Seixas Guimarães, referindo-se à possível generalização à totalidade da sua obra do topos crítico de, na sua narrativa de maturidade, Machado não ter feito concessões aos leitores, considera que, “[s]e não houve concessão no sentido de condescendência, violação de convicções pessoais ou barateamento de idéias”, resulta incontornável o fato de Machado de Assis sim ter cedido “ao gosto e expectativa do público leitor que ele imaginava e/ou desejava para sua obra”, assim como “que essa atenção e sensibilidade ao público seja um dos pilares da grandiosidade dessa mesma obra”.
Diríamos que, adaptando ad hoc a paradoxal afirmação machadiana de que ‘a verdade é essa, sem ser bem essa’, sendo o seu teatro por via de regra moral(izante), nele ‘a verdade (sim) é essa’ que se expõe às claras. De facto, no exercício da comédia, o autor prescinde das “rabugens de pessimismo” e evita instrumentos como “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” à Brás Cubas, assim como mitiga – e muito – a ambivalência e a indefinição, o relativismo e o ceticismo, a dúvida e o contraste que perpassam o seu mais atual e vigoroso discurso prosístico.
No entanto, é preciso e conveniente concordar, por um lado, com a reivindicação de Cecília Loyola – em concreto para a peça Lição de botânica e, em geral, para o conjunto do teatro machadiano – da “sua vocação de palco, justamente aquela que quiseram negar-lhe”; por outro lado, não seria menos proveitoso e pertinente subscrever a sua (re)visão dúplice naquilo que se refere à avaliação criteriosa da produção e intervenção teatral de Machado, prolongada no tempo, quando afirma que “o reconhecimento do autor, enquanto dramaturgo, se dá nos palcos de Ruggero Jacobbi e Ziembinski, por exemplo, e se substrai nas críticas de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, referências todas elas, obrigatórias no que diz respeito à história do teatro brasileiro”.
Enfim, Machado de Assis manteve com o teatro uma relação intensa, interventiva e diversificada, ora como iniciador, inspirador, incitador e mesmo intercessor da atividade teatral, ora como autor, tradutor, teórico, crítico e até censor do Conservatório Dramático. Essa teimosa (pre)ocupação teatral, que o acompanha de maneira sinuosa durante toda a sua vida, atinge uma intensidade e exclusividade especialmente concentrada entre 1859 e 1867; anos de formação nos quais, graças à sua relevante, embora irregular, produção literária e à sua não menos notável ação reflexivo-cultural, adquire um prestígio que, no futuro e durante o seu percurso vital, irá crescendo até converter Machado num dos maiores escritores e mais influentes intelectuais brasileiros (e não só).
Apesar dessa contundente realidade, a atividade teatral deste nosso (paradoxal) contemporâneo tem sofrido durante muito tempo – e, em menor grau, ainda hoje – uma secundarização valorativa e uma desconsideração crítica que, muito a pouco e pouco e com não escassas objeções, têm sido mitigadas nos últimos tempos. Grosso modo, poderíamos dizer que, face ao unânime juízo positivo do seu acurado exercício reflexivo e crítico sobre o teatro brasileiro da sua época, a respeito da, com certeza, irregular produção teatral do autor de Memorial de Aires, tem-se questionado, à maneira de um suposto dernier mot, tanto a sua efetiva entidade de espetáculo, quanto o seu interesse dramático – este último, em todo o caso, só reconhecido dentro dos redutores parâmetros da escrita estritamente literária e no âmbito de um estilo conciso em que, evidenciando-se a marca pessoal, não se exclui nunca a profundidade.
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Machado, como sempre com uma nítida consciência teórico-filosófica e artística, situa-se explicitamente a favor do centro nevrálgico de difusão e encenação do renovador, moralizador e civilizador repertório realista em âmbito carioca, o Teatro Ginásio Dramático, inspirado já desde o nome no, em traços largos, equivalente Gymnase Dramatique parisiense. Este teatro do bando realista colocava-se em clara e frontal oposição ao centro referencial da dramaturgia romântica, o Teatro S. Pedro de Alcântara, dirigido pelo mítico ator e homem de teatro João Caetano. A concorrência da nova tendência com a já ‘irrealizante’ dramaturgia romântica se estabelecia, de maneira fundamental, com a oposição da exaltação do individual e o nacional, da primeira, à incorporação da moral aplicada aos valores da camada social burguesa e da família, da segunda.
Na denominada “comédia moderna” e nos chamados “dramas de atualidade”, a utilidade transcendente, exemplar e de feitio didático para a sociedade, atinge um papel fundamental. Ao adotar, com efeito, os modelos dos ‘provérbios dramáticos’ mussetianos – e, a partir de meados da década de 1860, também sob o influxo antiutilitarista das conceções de Madame de Staël –, o autor carioca matiza estas caraterísticas gerais e faz com que se desviem para uma comicidade mais amável, para um humorismo mais ligeiro e elegante, assim como para uma desbotadura substancial da lição moral e do didatismo social, no espaço do lúdico e do muito levemente edificante, distanciando-se do ‘engajamento’ do modelo parcialmente alternativo que de maneira categórica, mas teórica, defende: o da ‘alta comédia realista’.
Não obstante, apesar das suas – por vezes, discutíveis – diferenças, é evidente que os dois modelos ‘da humana comédia’ pretendem um mesmo objetivo fundamental: o do ‘bom gosto’ e o do bons sens de matriz augieriana; coisa que, aliás, é compreensível, ao não ser menos verdade que uma e outra modalidades dramáticas participam do mesmo realismo burguês de base e de uma equivalente representação da ética moralizante e da estética convencional da alta sociedade contemporânea. Neste sentido, quer numa personagem concreta ou repartido entre várias, quer na celeridade dos contrastes dialogais, o discurso teatral vai edificando a sombra didática do muito caraterístico raisonneur da comédia realista, de que, como esperável, se serve o autor para transmitir ao auditório a lição moral e as ideias civilizatórias que, para ele, dão sentido a um teatro burguesmente comme il faut.
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Os cinco textos teatrais que se editam no volume são o resultado de uma escolha que, da parte dos editores e à maneira do poeta português Mário Cesariny, pretende ser “tendenciossíssima”, obedecendo a um critério parcial – isto é, partielle et partial –, mas que, do mesmo modo, quer ser paradigma do melhor teatro machadiano – também daquele com uma maior potencialidade cénica –, coincidindo tanto com a opinião tendencialmente comunal, quanto com os juízos de valor mais consensuais.
É assim que as cinco peças teatrais selecionadas, produzidas em e representativas da dramaturgia machadiana ao longo de mais de quatro décadas, aspiram a representar as diversas tipologias da comédia da altura que foram cultivadas por Machado de Assis: isto é, bref, a ‘comédia fársica’ Quase ministro (1862), a ‘comédia mítico-alegórica em verso’ Os deuses de casaca (1864-1865), a ‘comédia histórico-ficcional’ Tu só, tu, puro amor… (1880) e as ‘comédias burguesas’ Não consultes médico (1896) e Lição de botânica (1905).
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Desconsiderando a ideia de que ao nosso escritor lhe sucedesse a sua própria sombra, qual escriturais Dr. Jekyll e Mr. Hyde, podem concordar connosco em que uma hipotética limitação a respeito da sua dramaturgia, como procuramos pôr à vista nestas heteróclitas páginas, restringe uma realidade escritural muito mais variada e complexa, na qual algumas das suas peças de teatro devem ser ponderadas objetivamente como interessantes, se não magníficas, mostras de elegante comicidade e, nos dois sentidos possíveis da palavra, ‘parcial’ crítica e representação da moral e dos valores da categoria social hegemónica, tanto na época do Segundo Império de D. Pedro II, como no advento e nos primeiros lustros da República no Brasil.
Fugindo da ilusória aspiração de confluência do real e do representado, que Machado defendia no modelo reformador da alta comédia realista – em obediência a cujas diretrizes tout court, paradoxalmente, nunca chegou a escrever –, podemos constatar que, com a passagem do tempo, a sua menos pretensiosa e engajada obra ‘proverbial’ lhe permite assumir, de maneira distintiva, que a imagem especular permanece só como uma imagem. Em consequência, a pretensão teatral machadiana declarada em 1859, visando ‘reproduzir a sociedade no espelho fotográfico da forma dramática’ e contra a viellerie teatral que não cedia nada à l’air du temps, mudou para uma especular e datada miragem, para uma discutida magia teatral, entre os desiguais vetores do conservadorismo ético e da evolução estética, entre a impositiva realidade do seu mundo interior e o irreal desejo da sua vida exterior, de, apesar de tudo, estampar determinados e marcantes aspetos sociais contemporâneos.
A modo de conclusão – ou, antes, incitation, à maneira proustiana –, já que estamos plenamente cientes de que estes introdutórios comentários ancilares – que, a despeito de estarem parcialmente dirigidos contra o consensual, esperamos não motivem às turbas lapidadoras – não podem substituir o lido e o representado, ou dito em ‘provérbio’ demostrado que, pelo menos, os textos do literariamente divino Machado de Assis, serão ‘sólidos só lidos’ e, muito em especial, representados, apenas resta – à maneira de Brás Cubas – “não escorregar para o enfático” e convidá-los à leitura – e, se possível, a assistir à ideal representação – das cinco mostras que se editan neste livro de uma muito interessante escrita teatral que, embora não concebida só para ser lida, também se pode e deve ler.
Enfim, gostaríamos de concluir afirmando, de uma maneira um algo concetista, que se, para Theodor W. Adorno, a arte é magia liberada da mentira de ser verdade e, na medida em que designa uma ausência, é inerente ao teatro e a qualquer palavra, como manifestou Roberto Calasso, achamos que as cinco comédias machadianas selecionadas, sendo verdadeiras mentiras, podem contribuir para que recuperemos ausências do passado como autêntico e atualizado futuro.
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[De «Duas palavras», texto prefacial ao livro do professor, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras de Marco Lucchesi]
Não são poucos os méritos do presente volume que se volta para um Machado de Assis pouco frequentado. Não me refiro apenas ao recorte definido das cinco peças, mas à qualidade intelectual de dois raros leitores, Carlos Pereiro e Alva Teixeiro, feridos ambos pela palavra, autênticos lletraferits, e sem previsão de alta, graças a Deus!
Oferecem-nos um prefácio que em si mesmo revigora a espessura do ensaio como gênero: a cena e os bastidores da escrita, fora dos maquinismos tradicionais, ensaio de intensidade ou, em outras palavras, um ensaio que literalmente ensaia, e segue do centro para a margem e da margem ao centro, de forma lúcida e lúdica.
O resultado das qualidades apontadas surge aqui por inteiro, na leitura autônoma, sensível, criativa, que não procura satelitizar o teatro de Machado como um estranho meteorito de sua prosa, eclipsado pelo viés intempestivo, de quem pensa a inteligibilidade do processo criativo de Machado a partir de sua presumida enteléquia, como se a obra teatral fosse apenas causa eficiente, mero devir, etapa imatura, no compasso de sua floração ulterior.
Alva e Carlos deixam de lado esse pálido darwinismo da crítica machadiana, que vai perdendo força no Brasil, e mergulham na diferença específica, na sintonia fina das peças, isolando uma paisagem para alcançá-la, não como coisa em si, porque abertos aos ventos da história, mas ao longo das malhas de uma dramaturgia, dentro das coordenadas do espaço-tempo que as engendrou.
O ensaio introdutório da presente edição responde por esse caráter inovador, com autonomia de voo suficiente para criar ruídos benfazejos para as cinco peças de Machado, como quem usa a grande angular da cultura, em sobrevoo, para capturar a imagem forte com as lentes em zoom, que é o que se espera de um sólido roteiro.
Este livro encerra também uma sociologia oportuna a partir das peças machadianas que elucidam não poucos dilemas que hoje assombram o Rio e o Brasil, pressentidas pelas antenas sensíveis de nosso autor. Porque Machado viu mais longe e nos alcança, contemporâneo de um futuro sem aviso prévio.
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