“O que há nas coisas: esse é o verdadeiro mistério”
Jacques Lacan
Agarramos o smartphone, verificamos as notificações do Instagram, do Facebook, a última polémica no Twitter. Logo respondemos às mensagens do WhatsApp, e, como se de um hipnotismo se tratasse, deslizamos de novo o dedo num gesto quase litúrgico sob qualquer outro aplicativo. Entretanto, tentamos iniciar uma tarefa mais “digna”, mas, sem darmos por isso, estamos de novo no écran, sem rumo, passando assim horas sem “nada” fazer.
Esta é uma breve descrição que qualquer um de nós se pode identificar hoje em dia. O smartphone e as redes sociais infiltraram-se nas nossas vidas sem que as questionássemos demasiado, tornando-nos caçadores de informação, encadeados pela luz, diante de todas as outras coisas silenciosas e discretas que pairam diante de nós.
Byung-Chul Han, reconhecido filósofo alemão de origem Sul Coreana, continua a ser um dos pensadores contemporâneos mais lidos da actualidade, que nos recorda, de forma reiterada, que o Progresso é a mais tonta das religiões. Em “Não-Coisas – Quebras do Mundo de Hoje” (talvez o seu melhor livro depois de “ No Enxame”), Han aborda, com a lucidez que lhe é reconhecida, os novos e ambíguos paradigmas da humanidade. Explora desde uma perspectiva filosófica e crítica, o smartphone e a inteligência artificial, ao mesmo tempo que recupera a magia do sólido e o tangível, reflexionando sobre o constante ruído que nos distrai ou até mesmo a assaz perda da demora e do silêncio. Volta a levantar questões analisadas por Hannah Arendt, Walter Benjamim, ou até mesmo pelo seu admirado Martin Heidegger, alternadas com a execução do comando “F5”. Platão, Santo Agostinho, Descartes, Kant e Hegel não pensavam com um smartphone nas mãos.
Neste ensaio, o pensador aborda uma desmaterialização do mundo actual; o trânsito do sólido ao espectral, uma profunda mudança de paradigma que, segundo Han, provocará drásticas mudanças na vida humana. “Acesso, access, será a metáfora mais potente da próxima era (…)”. O termo “desmateralização” representa isso mesmo, a eliminação do material, do físico das nossas vidas, tudo passa a ser informação, ou como Han escreve, “passamos a ser infomatas”. Ao deixar a ordem do terreno introduzir-se-á de forma inexorável um novo espaço cujas relações, tal como as conhecemos até há bem pouco, terminam, passando a relacionar-nos através de plataformas online, com likes, posts, etc.
Neste sentido, para Han, o humano manualmente inactivo do futuro só fará uso dos dedos. Selecionará em vez de actuar, desde logo, para satisfazer as suas necessidades – impostas -, pressionará teclas, deslizará o dedo pelo écran do smartphone, a sua vida não será um drama, senão um jogo. Tão pouco quererá possuir nada, senão experimentar e desfrutar “A dominação perfeita será aquela em que todos os seres humanos só joguem. Renda básica e jogos de computador seriam a versão moderna de panem et circenses”. No fundo, esta ideia de desmaterialização dos objetos, das coisas, dos afetos, que o ser humano experimenta diante do que pode ser tocado, visto e cheirado, manifesta-se em função de um poder hegemónico autocraticamente imposto pela informação. Assim, segundo o filósofo, a informação exclui a observação larga e lenta, torna-nos míopes e precipitados, sendo impossível determo-nos com pensamento crítico sobre os fenómenos do mundo.
Hoje corremos atrás da informação sem alcançar um saber. Tomamos nota de tudo sem obter conhecimento. Viajamos a todas as partes sem adquirir experiência. Armazenamos grandes quantidades de dados sem participar na comunidade. Acumulamos amizades sem nos encontrarmos fisicamente com alguém. Desta forma subtraímos o Outro, a alteridade do Outro e subsequentemente a abertura à comunidade. A sobrecarga sensorial que emana a Infosfera submerge-nos no nosso Eu mais narcísico, faz com que o Outro desapareça, o Outro despojado da sua alteridade torna-se num objecto disponível e consumível.
Desta forma, passamos a viver no mundo da tecnologia da informação, como indica o autor, “… estamos na transição da era das coisas para as não-coisas. Não são mais as coisas, mas a informação que determina o mundo em que vivemos.” Estamos rodeados de estímulos praticamente vazios, que não duram mais que um suspiro, que não criam vínculos, que nos induzem a procurar outros novos estímulos, neste processo circular de consumo excessivo que se impõe com ferocidade à era do capitalismo tardio, em que o nosso tempo se desenrola. Os Big data, assim como os seguidores, tornam-se eixos que sustentam o nosso comportamento, o nosso pisar no mundo, o nosso falso estar-no-mundo, como diria Heidegger.
Somos viciados em Internet e o smartphone absorve-nos como sujeitos destituídos de vontade, de discernimento racional. Segundo Han, acreditamos que somos livres e, no entanto, vivemos escravos da informação, uma não-coisa, intangível, sem fiscalidade, sem a condição aurática, de que falava Walter Benjamin. Perdemos a relação direta com as pessoas ao evadir-nos como bichos sem cabeça naquela rede imaterial, “preferimos escrever mensagens de texto, em vez de telefonar, porque quando escrevemos ficamos menos expostos ao tratamento direto”, que tende a monopolizar as nossas ações, “a ausência de relacionamento e apego leva ao empobrecimento do mundo”.
Em suma, este ensaio alerta-nos sobre o “solucionismo tecnológico”, aquela utopia pela qual os meios técnicos resolveriam todos os problemas das nossas vidas quotidianas e que filósofos como o bielorrusso Evgeny Morozov ou a americana Shoshana Zuboff, em “Capitalismo de Vigilância”, questionaram no passado com assaz lucidez. Todavia, pelo constante ruído a que estamos cada vez mais submetidos, esquecemos recordar. Fica, no entanto, neste limiar de 2022 a recomendação de leitura de “Não-Coisas”. Talvez seja esta uma boa oportunidade para reflexionarmos sobre o que nos espera de este “admirável mundo novo”.