A vontade da Deusa, da Grande Mãe ou da Amada Eterna presidem o livro. Não se admirem, leitoras e leitores, se este livro semelha à vez moderno e antigo. Porque há cousas que não mudam embora nunca ofereçam a mesma figura, como factos diversos sob os quais subjazesse um único gesto divino.
Falarmos em termos de espírito é, todavia, raro nestes tempos. Somos velhas vítimas do autoritarismo eclesiástico e não se torna fácil trazer para a mesa os instrumentos com que a nossa sociedade foi torturada durante séculos, e que são a causa de que muitas pessoas confundam Igreja e religião. Mas nós devemos saltar por cima destes obstáculos referenciais e falarmos abertamente do conteúdo religioso ou, por palavras mais exatas, gnóstico desta obra. Não estamos obrigados a menos, se queremos é transmitir alguma perceção sincera do que é ou pode ser O teu corpo a oriente e a ocidente.
Com efeito, nesta obra de Pedro Casteleiro o gnosticismo surge como causado pela natural qualidade das cousas, e mesmo como que a pedido delas próprias o poeta deve deixar que protagonizem sua visão («O meu olhar nasce / de todas as cousas em volta»). O lavor do poeta é uma perscrutação permanente das realidades espirituais, e esse essencial trabalho poético só passa a estar concluído quando nomeia, quando dá forma verbal a mais uma concretização da Verdade que se manifesta no mundo. É um procedimento que coincide com o da magia: a fórmula utilizada, a música, o ritmo e o colorido alento das palavras empregadas invocam —e deste modo convocam— a presença do sagrado. Assim a imanência do que é certo é posto em foco através do poema, sendo o poeta um transmissor, um meio para a Verdade ser vista através da linha ténue dos versos, como graças à aplicação de um reativo alquímico por sobre o comum uso das palavras («A tua voz vulcânica / derrete-se / no vaso do coração. / Transmutando ouro em luz»).
Mas, perante tamanha evidência espiritual, o corpo aparece onde? Porque está de partida no título? Qual a importância do mundo material? Na realidade, o espírito, como a ideia de Deus, do Amor ou da Verdade, não são mais do que ferramentas de trabalho. Nunca poderá ver-se um “espírito puro”, sem qualquer vínculo com a matéria, a caminhar pelos campos em frente da nossa casa. Será sempre e necessariamente um espírito que se cansa, ou que tosse, ou sua… ou que reside numa árvore, num templo ou até no mar. Será algo que nos toca, que nos faz tremer, que nos adverte do que nos falta ou do que nos perverte. Sempre residirá num corpo e com outro quererá se comunicar. Porque o corpo é mais do que o vaso do espírito, é sua forma externa e as nervuras que o trespassam chegam mesmo a conectá-lo com o plano espiritual («Escravo teu à minha imagem à tua / semelhança»).
Existe, aliás, uma sabedoria que mana do corpo, dado que os nossos corpos são versões de um único corpo transmutado por gerações sem conta desde a primeira Mulher (que, como diz cabalisticamente a lenda do Paraíso Perdido, era o ser mais evoluído do Éden por ter sido gerada a partir da matéria primária ou adâmica) até a última que há de viver no final dos tempos. O corpo sabe, porque o corpo é herdado e nos não pertence, devindo nosso apenas para tentarmos a evolução que nos couber se formos capazes de cumprir o destino que se oculta entre as ramas da vida.
O corpo é, também, quem vibra e goza com o amor. E o poeta é necessariamente o cantor do amor porque percebe as doas da Deusa («se conheces aquilo / tudo que está inscrito / por baixo da pele do cantor, / o que hei de cantar».) Mas como homem seu corpo sente humanamente e as reações só podem exprimir-se em termos de “desejo” («Levantado o teu desejo / de vento sobre o meu / desejo»), de “frutificação” («E as tâmaras do teu silêncio / germinando-me por dentro»), de “memória” («E a memória / traça signos no abismo»), do passo relativo do tempo («Escrever de novo meu amigo / o nosso velho amor de vinho / como se nunca / o tivéssemos / bebido»), e até da infância como mundo da transparência ou da interpretação cabal do que existe, virtude primária há tanto tempo perdida e que precisamos recuperar para perceber os alimentos poéticos da vida («Como se nunca ninguém em mim / tivesse desterrado a infância»).
O processo gnóstico da criação poética conduz ao Conhecimento. Neste sentido, a sabedoria não é mais do que a compreensão da natureza da Deusa. O poeta fala perante o silêncio da divindade, traduz a Verdade em palavras vulgares, é, em definitivo, um médium ou transmissor do mundo do sacro para o espaço do profano. E deste modo, a poesia é sempre uma religião porque re-liga permanentemente a materialidade da vida com seus aspetos espirituais. Eis a qualidade antiquíssima dos rapsodos e dos poetas da mais ancestral Tradição, mulheres e homens conectados ao mundo mediante o Amor e mercê a ele ourives em palavras de uma perene sabedoria («Por vezes sussurras um conhecimento / tatuado»).
Assim sendo, O teu corpo a Oriente e Ocidente não podia deixar de ser um livro sobre o Amor. Nele o poeta usa, ligando para a antiga tradição galego-portuguesa, a polissemia própria da nossa poesia medieval: o poema refere-se ao mesmo tempo à experiência carnal e à sentimental, à mulher amada e à Deusa, de tal modo que sem negar um dos dois mundos todos eles se afirmam, até porque procedendo nós próprios da humilde terra também somos do pó das estrelas. Por isso neste livro o “tu” a quem a voz poética se dirige não deixa de ter as qualidades da mulher assim como as da Deusa, constituindo-se o poeta em abnegado servidor da mulher terrena ao tempo que humilde aprendiz das verdades supremas («o vento do amor e do temor / enlaça os nossos corpos com o / signo / do infinito»).
O poeta procura, portanto, o gesto verbal que possa conter toda esta complexidade. Ele procura permanentemente uma expressão para o eterno, mas é surpreendido constantemente pelos diversos modos em que o Mistério tende a se manifestar («Mas há lugares que o / silêncio trespassa, / lugares que me pedem / para eu os desenterrar»). A Deusa gera a sua potência na quietude, no silêncio e no segredo, porque é harmonia de contrários e portanto substância que só pode ser exprimida através do paradoxo («a sombra onde o teu furor germina»). O paradoxo, deste modo, é desde sempre um dos mais acertados recursos para poetizar o mundo («Porque eu prendido em ti / sou mais / do que lume, / não / sou nada»).
É este, em definitivo, um livro que comporta uma evidente vanguarda ao tempo que mantém um profundo ligame com a mais ancestral tradição poética, tanto com a galego-portuguesa quanto com a da literatura gnóstica universal. Um livro conscientemente escrito para este tempo, mas que partilha o hálito poético primordial de toda a época. Uma pérola que nasce na concha cárnea da inspiração.
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Nota: Prefácio do livro de poemas O teu corpo a oriente e a ocidente, de Pedro Casteleiro (Através Editora, 2017).
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